terça-feira, 2 de abril de 2013

O assunto é autismo - Tendências/Debates

folha de são paulo

MARA GABRILLI E RENATA TIBYRIÇÁ
TENDÊNCIAS/DEBATES
O ASSUNTO É AUTISMO
Os vetos da Dilma
Além do veto ao atendimento educacional especializado, também não foi contemplado o direito a horário especial por pais que trabalham
A lei federal 12.764/12 instituiu, em dezembro do ano passado, a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Fruto de um esforço admirável de mães e pais cansados de viver a exclusão, a lei garante à pessoa com autismo os mesmos direitos da pessoa com deficiência.
Tal avanço, contudo, não pode ofuscar a luta que ainda temos à frente. Além da necessidade de cobrarmos o governo federal para que publique um decreto que regulamente a lei, não há como calar-se diante dos vetos da presidente.
Em seu discurso de abertura na 3ª Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, Dilma afirmou: "Essa ação significou o reconhecimento, pelo governo federal, das escolas especiais, do papel que elas desempenharam e desempenham".
Ela se referia ao decreto presidencial 7.611/2011, que permite a distribuição dos recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) também para custear matrículas na educação especial.
No entanto, há uma incongruência entre o discurso e a atitude da presidente. Além do veto ao atendimento educacional especializado, também não foi contemplado artigo que garantia direito a horário especial por pais que trabalham e precisam acompanhar o tratamento de seus filhos.
O texto final do projeto de lei substitutivo, escrito por esta deputada, tinha a preocupação em garantir, além da inclusão no ensino regular, o atendimento em escola especializada às crianças e jovens com autismo que, pela gravidade de sua condição, dela necessitassem.
É evidente a importância da inclusão dos estudantes com autismo nas escolas regulares, públicas ou privadas, já que é insubstituível o direito de conviver com sua geração. Mas, subtrair o direito ao atendimento especializado vai contra a essência da própria lei, que é resgatar essas pessoas da exclusão.
Não se pode ignorar também que cerca de 60% a 70% dos autistas têm deficiência intelectual de leve a profunda e que as escolas regulares não têm currículo preparado para atendê-las. Assim, acabam se tornando um espaço apenas de socialização. A rede regular de ensino não investe no desenvolvimento de habilidades que essas pessoas possuem e que poderiam garantir-lhes, inclusive, uma profissão, contribuindo para sua autonomia e independência.
Cabe ainda lembrar que muitas pessoas com autismo não falam e não conseguem desempenhar as atividades da vida diária. Necessitam de total auxílio para tomar banho, vestir-se, escovar os dentes etc. O atendimento em escola especializada deve garantir esse aprendizado, o que indica a necessidade de um trabalho multidisciplinar intensivo, diário e em período integral.
Para se ter uma ideia, a incidência do transtorno do espectro autista em crianças é mais comum do que a soma dos casos de HIV, câncer e diabetes na infância. É justo excluir de muitas delas o direito de estudar e, principalmente, aprender de acordo com a sua capacidade? A regra admitia uma exceção clara, em benefício do aluno, e não como opção para a escola ou gestor recusar sua matrícula.
Hoje, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, diversos monumentos no mundo estampam-se de azul para instigar a população a refletir sobre o tema.
No Brasil, um azul ainda ofuscado imprime o anseio de milhares de famílias que cobram por políticas públicas que enxerguem os autistas. Já passou da hora de resgatá-los da margem de seus direitos.



MARIA GABRIELA MENEZES DE OLIVEIRA
TENDÊNCIAS/DEBATES
O ASSUNTO É AUTISMO
Construir uma sociedade inclusiva
Apenas quando a convivência com o deficiente se tornar um hábito corriqueiro poderá se dizer que a sociedade é, de fato, inclusiva
Hoje, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, várias manifestações estão programadas com o intuito de tirar o véu da invisibilidade que pesa sobre os ombros de milhões de famílias no mundo.
Um passo importante foi dado com a sanção da Lei Berenice Piana, segundo a qual portadores do transtorno do espectro autista devem ser considerados deficientes para fins legais.
A lei também propõe a realização de um censo para saber quantos autistas, afinal, há no Brasil. Existe um parâmetro: estudo divulgado em meados de março de 2013 pelo "National Health Statistics Report" sugere a impressionante prevalência, nos Estados Unidos, de uma criança afetada a cada 50.
Esses números indicam a necessidade de uma séria avaliação dos profissionais da área da saúde e da comunidade em geral. Mas como o diagnóstico não respeita classe social, etnia nem geografia, é razoável pensar que também no Brasil possamos estar diante de uma questão de saúde pública infelizmente ainda não detectada.
Além do espectro autista, o número de deficientes em geral no mundo é muito alto. Por isso, em setembro, ocorre a Reunião de Altas Autoridades das Nações Unidas sobre Deficiência e Desenvolvimento, cujo tema principal é a inclusão de deficientes. A justificativa é simples: estima-se que pelo menos um bilhão de pessoas sejam deficientes e excluídas da possibilidade de acesso em igualdade de condições à educação, trabalho e assistências médica, social e legal. A situação causa um empobrecimento desproporcionalmente maior de deficientes em relação a seus concidadãos.
Para preparar essa reunião, cujas deliberações e conclusões deverão ter repercussão mundial, houve há alguns dias uma consulta pública sobre quais ações devem ser tomadas para para garantir a inclusão social de pessoas com deficiência.
Para mim, mãe de um garoto no espectro autista, é fundamental preparar a sociedade para os receber. Para isso, é preciso fornecer o conhecimento da existência e da perspectiva do outro. Se, como dizem, os autistas têm dificuldades nesse quesito, o que tornaria a integração deles mais difícil, o que pensar de uma sociedade cujos cidadãos, em princípio, são, de fato, capazes de se por no lugar do outro, desde que semelhante, mas excluem o diferente?
Esse ponto desmascara a dificuldade de se colocar em um lugar desconhecido. O exercício da cidadania também se manifesta no esforço para entender, tolerar e não discriminar. Ao mesmo tempo, instituir políticas públicas para, educando os cidadãos, dar-lhes novos referenciais para o entendimento e a inclusão completam esse esforço.
As perspectivas das pessoas com transtorno do espectro autista e as dos outros são muito diferentes, como se estivessem em lados opostos de uma porta fechada. Por isso, insisto muito na questão da inclusão nas escolas regulares desde pequenos e mediada por profissionais habilitados para promover a saudável interação entre todas as crianças.
Quando saber conviver com o deficiente se transformar em um hábito simples e comum, a sociedade será de fato inclusiva.
Alguns autistas têm a sorte de já viver em um microambiente assim. É pouco. O essencial é realizar campanhas públicas para esclarecer e educar o conjunto da população desde já. Parafraseando o slogan da reunião das Nações Unidas sobre deficiência e desenvolvimento: quebrem-se as barreiras e abram-se as portas do isolamento social por meio do conhecimento.

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