Natureza humana, espírito de criança
Se nós compararmos um chimpanzé pequeno a uma criança de dois anos, ambos se parecem muito
"ANNUNTIO VOBIS gaudium magnun: habemus solidum" ("Eu vos anuncio grande alegria: temos sólido"), disse ele de dentro do banheiro, inspirado é claro na eleição do novo papa, para comemorar o fim da diarreia que o perseguiu por algum tempo. Sua mulher, do lado de fora, comentou: "Você nunca vai deixar de ser criança".
Sorte dele, que assim desfruta de uma característica peculiar de nossa espécie: a neotenia. É o nome que os biólogos dão a este aspecto de espécies que conservam a mente de criança pela vida afora. Quer dizer "apego à forma nova".
Se nós compararmos um chimpanzé pequeno a uma criança de dois anos, ambos se parecem muito: são criativos, curiosos, brincalhões, engraçados, buliçosos, mexem em tudo, ficam intrigados com o que não entendem, querem ver o que tem atrás, o que tem embaixo e como as coisas funcionam.
Não param de aprender coisas novas, ligam-nas com as antigas para formar terceiras coisas, ao ponto de usar uma recém aprendida fórmula pomposa para avisar que a obra, em vez de líquida, saiu moldada e sadia.
Algum tempo depois, infelizmente o chimpanzé vira um adulto blasé e entediado que já sabe meia dúzia de truques de sobrevivência e não se interessa mais em aprender coisa nenhuma. A menos, é claro, se algum cientista começar a premiá-lo com pencas de bananas a cada novidade que ele incorpora, aí periga aprender a ler.
Já a criança humana, se não for muito enquadrada e reprimida, continua com aqueles aspectos supracitados pelo resto da vida -seguirá interessada e engraçada até a morte.
Curioso é o verbo latino "adolescere". Significa "crescer". Em português, seu particípio passado deu em "adulto", "crescido". Já o particípio presente deu em "adolescente", quer dizer "crescente, em crescimento", que é o equivalente a criança, que significa "em criação".
Resulta que nós todos, na melhor das hipóteses, deveríamos continuar adolescentes, crescentes, ou crianças pelo resto da vida.
Há quem pense que isto é um elogio à adolescência cronológica (que os norte-americanos chamam de teenagers, referindo-se aos números de 13 a 19 que terminam em teen, em inglês). Não é.
Infelizmente a adolescência cronos (do tempo contado) é completamente diferente da adolescência kairós (do tempo bem encaixado).
A primeira cai sobre nós como um fardo, um tempo "em que ainda não é dia claro, e já é alvorecer, entreaberto o botão, entrefechada a rosa, um pouco de menina, um pouco de mulher" (Menina e moça, Machado de Assis). Ou seja, um desastre, um perrengue, um desajeito. Não à toa os pais chamam de "aborrecente", embora quem mais se aborreça seja o próprio.
A adolescência kairós só acontece como invenção nossa a ser defendida com unhas e dentes para que evitemos o destino de virar chimpanzé blasé.
Aí entra um truque de nossa complexidade: auto-sustentar a criança. Aprender a ganhar independência financeira (sem ela, não há outra) para se manter criando, crescente, inventivo, interessado, curioso, achando graça nas coisas, capaz de encantamento, enfim, feliz como uma criança.
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