O Carmo não se opôs a Tiradentes, descendente de família sem fortuna, e deu-lhe a credencial para
quem chegava a Vila Rica com intenção de prosperar
Ângelo Oswaldo de Araújo Santos
Estado de Minas: 04/05/2013
Ao
proceder a amplo trabalho de pesquisa nos arquivos da Ordem Terceira do
Carmo de Ouro Preto, que resultou em livro referencial, a historiadora
Maria Agripina Neves encontrou, naqueles anais, um registro de
significado maior. Trata-se do ingresso de Joaquim José da Silva Xavier,
o Tiradentes, no sodalício mais importante e seletivo de Vila Rica. O
assento se acha à folha 152 do Livro Segundo de Entradas.
Morador
na sua vila natal, São José del Rei, conforme anotado no termo
respectivo, ele foi recebido como irmão do Carmo, em 20 de maio de 1775,
14 anos antes de sua prisão como conspirador contra a rainha, ocorrida
em 10 de maio de 1789, no Rio de Janeiro. Em 20 de agosto de 1776,
ganhou a patente da ordem.
No livro sobre os carmelitanos de
Ouro Preto, a autora destaca a presença de Tiradentes entre os irmãos
que contribuíram para a construção dos altares, à época do governo de
Dom Rodrigo José de Menezes (1780-84), ele próprio prior da irmandade e
também doador. Durante os três primeiros anos da estada em Vila Rica,
dom Rodrigo assumiu o priorato do Carmo (18 de julho de 1780), após ter
apresentado sua patente da cidade do Porto e sido eleito pelos pares
mineiros. Rodrigo José de Menezes foi a primeira autoridade a
diagnosticar a decadência da exploração aurífera nas Minas e a
necessidade de mudança nos rumos da administração colonial.
No
rol dos que fizeram doações, ao lado de Tiradentes, aparecem Joaquim
Silvério dos Reis, delator da conjuração ao visconde de Barbacena, o
inconfidente tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade (filho
de José Freire de Andrade, ex-governador e segundo conde de Bobadela) e
seu sogro, José Álvares Maciel, o qual não pertencia à Ordem. Todos
tinham títulos militares e certamente agradavam ao governador
capitão-general, no seu propósito de viabilizar, como prior, a fatura
dos altares laterais. O historiador Francisco Antônio Lopes, na obra
clássica sobre o Carmo de Ouro Preto, publicada pelo Iphan em 1942, cita
essa lista como “documento avulso” (página 74) e diz ter sido assinada
por 84 pessoas, que “concorreram com esmolas”, sem no entanto
identificar qualquer delas.
Maria Agripina Neves sublinha, ainda,
que o contratador João Rodrigues de Macedo, cuja residência, a Casa dos
Contos, foi transformada em cárcere dos conjurados presos em Vila Rica,
elegeu-se prior em 5 de julho de 1789, um mês e um dia depois da morte
do poeta Cláudio Manuel da Costa, no grande cômodo cuja porta está sob a
escada da bela residência da Rua São José. Empossado no dia 16, data em
que se celebra a Virgem do Carmo, ele permaneceu exatamente um ano no
alto cargo de prior do Carmo, sendo sucedido pelo sargento-mor João
Carlos Xavier da Silva Ferrão, tio de Marília de Dirceu.
Rodrigues
de Macedo havia entrado para a Ordem em 15 de julho de 1757 e faleceu
na Vila da Campanha da Princesa, Sul de Minas, em 8 de outubro de 1807.
Foi ele quem protegeu Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira,
endividada e carente, nos anos que se seguiram ao malogro da conjuração,
tendo por consequência a prisão e morte no exílio do autor do poema
“Bárbara bela”, Alvarenga Peixoto.
O poeta e coronel Inácio José
Alvarenga Peixoto, em depoimento à Devassa da Inconfidência, descreve
Tiradentes como aquele “oficial feio e espantado” que havia encontrado
na vivenda de João Rodrigues de Macedo. Os depoentes se empenharam em
responsabilizar o Tiradentes, descrevendo-o como um arrebatado e
delirante. Essa imagem, afastada pelo ícone barbudo do Cristo
republicano, está entre as pistas que podem levar à origem de um
conceito negativo a respeito do líder do movimento de 1789. Tiradentes,
segundo diversos autores, teria sido um falastrão desastrado, um
patriota boquirroto que pôs a perder uma ideia que se aninhara, sem
maiores efeitos, na consciência de pessoas proeminentes na vida da
capitania mais populosa e produtiva da colônia lusitana. Francisco
Adolfo de Varnhagen, áulico do Império, na sua História do Brasil,
reinterpreta a descrição do poeta: “Era bastante alto e muito espadaúdo,
de figura antipática, e ‘feio e espantado’”.
No período
imperial, pressentiu-se no Tiradentes o símbolo perfeito para a
propaganda republicana, tal como irrompeu na pregação liberal de Teófilo
Ottoni, ao se insurgir contra a ereção da estátua equestre de dom Pedro
I, ainda hoje vista na praça carioca em que o herói mineiro foi
supliciado, em 21 de abril de 1792. O historiador Joaquim Norberto de
Sousa Silva escreveu então uma versão da Inconfidência, na qual
Tiradentes é desvestido do heroísmo com que se representava perante os
clubes republicanos que começavam a se multiplicar pelo país. Seria,
para Joaquim Norberto, um destemperado que acabou se tornando um
místico.
Homem de temperamento inquieto e audacioso, sempre em
busca de atividades diferentes, as quais experimentava com ansiedade,
ele se dedicou tanto à mineração como à lavoura, passando pela cura de
feridas e a prática da odontologia (disse ter “a prenda de pôr e tirar
dentes”), que lhe valeu a alcunha, as lidas de tropeiro e mascate e a
projeção de um sistema de abastecimento de água para o Rio de Janeiro,
além de trapiches para o porto carioca, a vida militar e a ação
subversiva.
HOMEM ANIMOSO
Órfão de mãe
aos 9 anos, e de pai aos 11, não se casou e se envolveu com algumas
mulheres, entre elas Ana, jovem de Minas Novas e sobrinha do padre
Rolim, com quem quis casar-se, e Ana Mariana, da Fazenda das Cebolas, na
serra fluminense, em cuja entrada foi exposta uma de suas pernas em
poste de ignomínia. Seria “temerário”, e não “louco”. Um homem animoso,
como o definiu o cônego Luiz Vieira da Silva, um dos mais eruditos
inconfidentes, o “animoso Alferes” do Romanceiro da Inconfidência de
Cecília Meireles.
Alega-se que não teria as qualidades
necessárias ao verdadeiro líder de uma plêiade de poetas, advogados,
sacerdotes e militares, gente letrada e poderosa que não se sujeitaria
ao comando ou à influência de um caráter dúbio, inconstante e agitado,
ou “espantado”. Reforça essa posição o argumento conservador de que não
pertencia aos quadros superiores da sociedade mineira, sendo um simples
alferes, sem acesso às classes altas.
O fato de os carmelitanos
terceiros da sede da Capitania das Minas terem acolhido Tiradentes, em
1775, é prova evidente de que, aos 29 anos (nasceu em 1746, tendo sido
batizado em 12 de novembro na Capela de São Sebastião do Rio Abaixo,
filial da matriz de São João del-Rei), tinha abertas as portas do grêmio
mais restrito da capital e ali haveria de subir socialmente e preparar
sua inserção na elite do tempo. Fez-se em seguida conhecido e amigo de
personalidades influentes, que iria procurar envolver na conjuração. O
Carmo não se opôs a Tiradentes, descendente de famílias sem fortuna, mas
conceituadas, e deu-lhe a credencial decisiva para quem chegava a Vila
Rica e tinha intenção de prosperar na “pérola” do Brasil, assim chamada a
metrópole mineira pelo cronista do “Triunfo eucarístico”.
Ângelo Oswaldo de Araújo Santos é presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).
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