Para superar a fragmentação das relações
sociais, o filósofo canadense Charles Taylor, que vem a BH na semana que
vem, propõe a construção de um senso de ação política comum entre os
cidadãos
Alysson Assunção Andrade
Estado de Minas: 04/05/2013
Nascido
em 5 de novembro de 1931 em Montreal, no Canadá, o filósofo Charles
Margrave Taylor é considerado hoje uma das figuras de maior
representatividade no meio acadêmico e social no que se refere ao
pensamento sobre a ética e a política da contemporaneidade. Formado em
história em 1952 pela Universidade McGill, Taylor continuou seus estudos
na Universidade de Oxford, onde adquiriu o bacharelado em filosofia
política e econômica. Posteriormente, em 1961, doutorou-se em filosofia
política. Lecionou em renomadas universidades dos Estados Unidos, como
em Princeton e Berkeley, além da inglesa Oxford. Em 1991, Taylor foi
nomeado para compor o Conselho de Língua Francesa da província do
Quebec. Em 2000, recebeu a titulação de Grande Oficial da Ordem Nacional
do Quebec. E em 2007 foi agraciado com o Prêmio Templeton, devido às
suas contribuições filosóficas a respeito dos estudos que empreendeu
sobre a espiritualidade do ser humano. Atualmente, Taylor leciona na
Universidade McGill, no Departamento de Estudos Religiosos.
Enquanto
pensador continuamente preocupado com as questões que desafiam o
exercício da política nas sociedades contemporâneas, Taylor busca
conceber um pensamento e uma ética filosófica que primem pelo
reconhecimento das diferenças culturais, sociais e morais existentes
entre os diferentes indivíduos, grupos e nações. Daí seus estudos
contemplarem um vasto campo das ciências humanas, passando pela
história, antropologia, sociologia, psicologia, filosofia e direito.
Taylor
estudou inúmeros autores de referência na filosofia para consolidar
suas reflexões. Dentre eles podemos destacar Hegel, Herder, Heidegger,
Wittgenstein e Merleau-Ponty. Seu profundo estudo historiográfico a
respeito da constituição da modernidade visa esclarecer quais os fatores
históricos, sociais, culturais, políticos e filosóficos que não só a
tornaram possível, mas que se consagram como referência fundamental para
compreendermos o homem moderno. Neste empreendimento intelectual e
filosófico, a política de reconhecimento desenvolvida por Charles Taylor
surge como uma das mais importantes contribuições do canadense às
demandas das políticas democráticas atuais, que, enquanto tais,
vislumbram o fenômeno cada vez mais crescente do multiculturalismo nas
sociedades globalizadas.
Segundo Taylor, a exigência do
reconhecimento na atualidade adquire certa premência devido à suposta
relação entre reconhecimento e identidade, significando este último
termo qualquer coisa como a maneira como uma pessoa se define, como é
que as suas características fundamentais fazem dela um ser humano. Neste
contexto, os indivíduos e grupos não lutam apenas para obterem o
reconhecimento de suas diferenças. As lutas por reconhecimento se
entrelaçam também com lutas pela distribuição tanto do poder político,
quanto do bem-estar econômico.
Ora, na maior parte das sociedades
contemporâneas, como Canadá, Estados Unidos, Europa, América Latina –
destacadamente o Brasil –, a fragmentação das relações sociais que são
inerentes ao multiculturalismo mostra-se caracterizadora de um
pluralismo de identidades, visto que promove ações políticas de
naturezas diversas. Em face disso, verifica-se que, em grande parte do
mundo, não só a discriminação, mas também o genocídio e a limpeza étnica
– como formas de eliminar as diferenças culturais presentes na dinâmica
das sociedades – buscam, muitas vezes, atingir um ideal de
homogeneidade, de não contradição, de controle e passividade dos
cidadãos que são próprios das políticas de massificação e totalitarismo
que emergiram no século 20.
A grande problemática em relação ao
reconhecimento e sua relação com a construção da identidade dos
indivíduos é expressa por Taylor quando ele nos diz que a nossa
identidade é formada, “em parte, pela existência ou inexistência de
reconhecimento e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorreto dos
outros, podendo uma pessoa ou grupo de pessoas serem realmente
prejudicadas, serem alvo de uma verdadeira distorção, se aqueles que os
rodeiam refletirem uma imagem limitada, de inferioridade ou de desprezo
por eles mesmos”. Por isso ele argumenta que o não reconhecimento ou o
reconhecimento incorreto pode afetar negativamente o indivíduo, bem como
ser uma forma de agressão, ao reduzir a pessoa a uma maneira de ser que
é falsa, distorcida, e que restringe a sua real potencialidade.
Dessa
forma, Taylor demonstra que a centralidade da questão do
reconhecimento, assim como a necessidade de sua emergência nos
diferentes espaços públicos da vida cotidiana dos agentes sociais, é de
crucial importância para as ações políticas concretas dos municípios,
estados, nações e agências internacionais, visto que os danos causados
pelo não reconhecimento podem ser catastróficos para inúmeras pessoas,
grupos e civilizações. Vale dizer, o reconhecimento incorreto não
implica só uma falta do respeito devido. Ele “pode também marcar as suas
vítimas de forma cruel, subjugando-as através de um sentimento
incapacitante de ódio contra elas mesmas. Por isso, o respeito devido
não é um ato de gentileza para com os outros. É uma necessidade humana
vital”.
FUSÃO DE HORIZONTES A proposta de Taylor
é a de superar a fragmentação das relações sociais que muitos
indivíduos vivenciam mediante a construção de um senso de ação política
comum entre os cidadãos. Para tanto, ele utiliza-se da noção
hermenêutica de fusão de horizontes, presente no pensamento de
Hans-Georg Gadamer. Esta noção visa superar o horizonte histórico que a
própria tradição nos coloca. Para que se tenha a verdadeira compreensão
de nossas ações e interpretações é necessário que realizemos uma
reconquista dos conceitos de um passado histórico de tal modo que esses
contenham também nosso próprio conceber. Assim, a construção da
identidade, tal como pensada por Taylor, não ocorre anteriormente às
ações dos indivíduos, mas no decorrer do processo de interação social
que estes indivíduos realizam nos espaços por onde transitam.
Taylor
concebe que a característica decisiva da vida humana é o seu caráter
fundamentalmente dialógico. Isso significa que é a partir dessa condição
de agente dotado de linguagem que o homem pode se transformar em um
sujeito pleno, capaz de compreender a si mesmo e de definir sua
identidade por meio da aquisição de ricas linguagens, utilizando-as para
expressar-se.
Assim compreendido, o exercício dialógico propicia
a formação e reconhecimento das identidades individuais e coletivas e
pode ser exercido tanto no plano íntimo, através da relação do indivíduo
com os outros membros de sua família, como no plano social, na esfera
pública, através da política de reconhecimento igualitário que gera a
identidade dos membros que compõem as comunidades. Portanto, os homens
são agentes corporificados que vivem em condições dialógicas e habitam o
tempo de uma forma especificamente humana. Neste sentido, os homens
possuem a capacidade de conferir sentido às suas vidas mediante uma
história que liga o passado do qual vieram com o futuro, isto é, com os
projetos de vida que ainda estão por realizar-se.
Alysson Assunção Andrade é mestre em filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte.
PALESTRA E CURSO
O
filósofo canadense Charles Taylor participa em Belo Horizonte, nos dias
6 e 7, de conferências na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
(Faje) e na PUC Minas. No dia 6, às 10h, na Faje (Av. Cristiano
Guimarães, 2.127, Planalto, (31) 3115-7013), ele profere a palestra
“Pertença religiosa num mundo secular”; no dia seguinte, ele fala na PUC
Minas, às 19h (Av. Dom José Gaspar, 500, Coração Eucarístico, (31)
3319-4633). Está também programado minicurso sobre as ideias do
pensador, nos dias 6 e 7, das 14h às 15h40, na Faje.
Intérprete da secularização
Elton Vitoriano Ribeiro
Estado de Minas: 04/05/2013
Autor de importantes
trabalhos em filosofia, Charles Taylor lançou, em 2007, uma obra
monumental: Uma era secular (Editora Unisinos). A relevância cultural da
reflexão apresentada por Taylor neste livro pode ser observada na
releitura que faz da história da secularização, na diversidade de
exemplos apresentados e na profundidade filosófica de suas análises
sobre a religião e sua incidência prática na sociedade e na vida das
pessoas.
Taylor começa seu trabalho com uma pergunta: “Por que
era virtualmente impossível na sociedade ocidental não crer em Deus, por
exemplo, em 1500, enquanto em 2000, para muitos de nós, esta escolha
parece não apenas fácil, mas inevitável?”. Para responder a esta questão
ele aponta três motivos que sustentavam a crença em Deus em 1500.
Primeiro, o mundo natural era entendido como um cosmos ordenado que
funcionava sob as ordens de Deus. A intervenção divina era reconhecida
nos grandes eventos naturais, como tempestades, epidemias, mas também em
grandes momentos de fertilidade e prosperidade. Em segundo lugar, Deus
era necessário para a existência da própria sociedade. Não apenas no
sentido óbvio de Criador. A própria vida das várias associações que
formavam a sociedade estava intrinsecamente associada aos ritos e aos
atos de devoção com os quais as pessoas e a sociedade expressavam as
suas crenças. Finalmente, vivia-se num mundo encantado, povoado por
espíritos e demônios. No mundo encantado dos nossos antepassados estavam
presentes espíritos bons, que atuavam ajudando as pessoas, e espíritos
maus, que as prejudicavam. No imaginário social, estes espíritos tinham o
poder, por exemplo, de curar enfermidades, evitar desastres e ajudar na
boa colheita. Esta mentalidade mágica era difusa também em objetos
especiais que gozavam de uma força milagrosa. Numa sociedade assim era
absurdo duvidar da existência de Deus.
O progressivo
desaparecimento destas razões anteriores deve ser compreendido
juntamente com outra razão importante: uma crescente confiança do ser
humano em si próprio. Enquanto antes o indivíduo tinha uma personalidade
porosa às influências, na modernidade o indivíduo torna-se cada vez
mais confiante na capacidade de definir sua própria identidade. Tem-se
uma nova concepção de indivíduo, confiante na própria capacidade de
criar uma ordem moral imanente, sem referências a uma ordem externa.
Todo este complexo conjunto de situações e acontecimentos produzirá um
imaginário já não fundado em estruturas religiosas, mas no consenso
entre as pessoas. Este imaginário produz não apenas uma nova ordem moral
para a vida social, mas uma nova consciência do divino e da vida humana
cotidiana. Surge um novo imaginário social secular, que já não tem o
seu fundamento em Deus ou em alguma antiga tradição, mas, sim, na razão.
Não
é difícil imaginar um quadro imanente como lugar de realização concreta
deste novo imaginário social. A perda do sentido da ideia de Deus como
necessária para a ordem humana social e a redução do projeto humano à
realização pessoal do indivíduo configuram parte desta virada
antropológica. Esta ordem impessoal onde Deus é visto como o arquiteto
do universo, atuante apenas nas leis imutáveis da natureza, ajuda a
criar este clima de desencantamento. Deus permanece como o criador, o
maior benfeitor ao qual os seres humanos devem toda a gratidão. Porém, a
vida cotidiana é cada vez mais marcada pelo papel crescente da economia
e da racionalidade instrumental. Deus vai tornando-se uma realidade
secundária. A ordem social é fruto do trabalho humano, que, juntamente
com a realização moral, é resultado do esforço humano que se empenha
responsavelmente numa realidade concreta e imanente. Todo este movimento
não poderia deixar de produzir um novo horizonte de sentido. Este novo
horizonte fica ao meio da estrada entre o ateísmo e o teísmo. É um
espaço intermediário de uma espiritualidade indefinida e de uma nova
atitude diante da moral que passa cada vez mais a aceitar os limites da
condição humana descritos pela ciência.
RELIGIÃO MÍNIMA Neste
complexo processo de transformação, a melhor forma de compreender a
secularização não é a de investigar a passagem de uma cultura crente
para uma cultura secular. A melhor forma é fazer atenção aos novos
horizontes de compreensão da religião que vão surgindo. A tese de Taylor
é a de que a secularização não significa simplesmente declínio da
religião. A secularização comporta uma mudança na forma de as pessoas se
confrontarem com a religião. A intuição de Taylor é que a cultura da
secularização não gera necessariamente uma crise total, nem uma negação
absoluta da religião. Para muitos, a sede da transcendência continua a
ser presente como uma forma de religião mínima. Por isso, para Taylor a
religião deve caracterizar-se pela fé numa realidade transcendente e na
aspiração a uma transformação que ultrapasse a mera realização humana
ordinária. Assim, é possível constatar o aparecimento de novas
modalidades de vivência religiosa. Novas formas de oração e meditação. O
crescimento de obras de caridade. Grupos de estudo e aprofundamento da
fé. Peregrinações. Modalidades diversas de grupos de partilha e vida
espiritual. É a sobrevivência na religiosidade, da transcendência, numa
sociedade secularizada.
Na interpretação de Taylor, a fé
religiosa deve constantemente confrontar-se com opções seculares e
imanentes que tendem a produzir um horizonte fechado, marcado fortemente
pelo individualismo moderno, pela razão instrumental, pela compreensão
do tempo de forma linear e secularizada. Este horizonte tende a suprimir
todo tipo de soluções seguras e definitivas. Cada pessoa, conforme sua
atitude crítica, acolhe mais ou menos tal horizonte na própria vida. Ao
acolher este horizonte, cada um enfrenta dilemas próprios de viver numa
posição intermediária entre os extremos de uma religião transcendental e
de um materialismo redutor da vida humana.
Finalmente, apesar
das discussões sobre o declínio da prática religiosa, a sociedade
contemporânea não pode ser entendida simplesmente como irreligiosa. À
medida que antigas formas de religiosidade vão se enfraquecendo, novas
formas vão surgindo e ganhando força. Estas novas formas são tentativas
de viver a fé e a espiritualidade numa nova situação, em que a religião
já não é algo partilhado por todos. A secularização não implica a
ausência da religião ou o fim das exigências espirituais do ser humano.
Implica o desenvolvimento de novos impulsos espirituais, muito mais
fracionados do que no passado. Para Taylor, o perigo da secularização é o
de construir um imaginário social pequeno e fechado, não levando em
consideração as questões postas ao ser humano pela religião. Isso
porque, conclui Taylor, o ser humano ainda leva dentro de si um desejo
de plenitude que ultrapassa a realização humana no mundo histórico.
Elton
Vitoriano Ribeiro é doutor em filosofia e professor da Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Autor de
Reconhecimento ético e virtudes (Editora Loyola).
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