Livros sobre o compositor e poeta Aldir
Blanc e coletânea de entrevistas sobre a era dos festivais mostram
importância da música como elemento de compreensão da dinâmica cultural
do país
João Paulo
Estado de Minas: 04/05/2013
A
música brasileira continua gerando bons estudos, reportagens e
biografias, como mostram lançamentos recentes. O curioso é que, como já
observaram os marxistas Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho há
algumas décadas, a música popular no Brasil ocupa lugar cultural que, em
outros países, é cativo da literatura. Ela seria nossa forma mais
espontânea e rica de expressão e reflexão sobre a situação social do
país. Sem se aprofundar na tese, o que chama a atenção é que, nascida no
contexto da cultura popular, a música passa a ocupar o cenário
acadêmico e jornalístico, ganhando com isso, a cada ano, uma
bibliografia mais volumosa e expressiva.
É o caso de dois livros
que acabam de chegar ao mercado. Em primeiro lugar a biografia Aldir
Blanc – Resposta ao tempo – Vida e letras, do jornalista Luiz Fernando
Vianna (Editora Casa da Palavra). Outro livro que vai contribuir para o
conhecimento da MPB é o volume de entrevistas Uma noite em 67, dos
documentaristas Renato Terra e Ricardo Calil (Editora Planeta). Eles
partem de um ponto de vista próprio – um perfil e uma coletânea de
entrevistas feitas para um documentário cinematográfico – mas trazem
algumas identidades que se deslocam para propor novos enquadramentos
acerca do lugar da canção popular na cultura brasileira. É nítido o foco
na canção – poema entoado a partir de uma melodia. E a diferença de
linguagem é um sinal de riqueza e da conquista de espaços para reflexão
sobre o tema em livros, indo do jornalismo ao documentário
cinematográfico.
Aldir Blanc – Resposta ao tempo – Vida e
letras, de Luiz Fernando Vianna, é livro que andava fazendo falta, pela
estatura e reserva do biografado, que nunca foi de aparecer muito e
cultiva uma sábia discrição suburbana. O poeta, cronista e compositor
Aldir Blanc, autor de mais de 600 canções e parceiro de nomes como João
Bosco, Guinga, Maurício Tapajós, Cristóvão Bastos e Moacyr Luz, entre
outros, ganha um perfil jornalístico consistente, escrito com paixão,
mas sem puxa-saquismo, recheado de casos saborosos e informações de
primeira mão. O autor entrevistou longamente seu perfilado, recuperando,
desde a infância, o arco de realizações do artista, chegando aos nossos
dias. É um retrato humano que é também a crônica do Rio além da Zona
Sul, da época dos festivais, da ditadura militar, da emergência da
indústria cultural, da consolidação do que chamamos hoje de música
popular brasileira ou MPB.
Não faltam ao livro histórias de dor,
dramas familiares, perdas e reveses. Mas também não fica de fora a verve
de Aldir, seu jeito de levar a vida, seu humor nem sempre suave, sua
sabedoria que não economiza uns cacetes quando necessário. Luiz Fernando
Vianna, no entanto, atende ao interesse dos admiradores do poeta e
concentra a maior parte de seu perfil na escolha de Aldir pela canção
como forma de expressão de sua visão de mundo. Ele conta como Aldir
resolveu apostar na música, como escreveu as primeiras canções, recorda a
participação no movimento dos artistas universitários, o empurrão dado
por Elis Regina e a militância entusiasmada nas hostes da boemia.
Aldir
foi sempre um homem atormentado, até mesmo pelas circunstâncias
familiares. Largou a psiquiatria em 1974, depois de militar no movimento
em favor da humanização do atendimento (antipsiquiatria), por se sentir
despreparado; com a morte das filhas gêmeas, logo depois do nascimento,
abdica de vez da medicina (“Aí é o seguinte: se eu não salvo minhas
filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso que eu quero fazer”);
perdeu muitos amigos ainda jovens (“Meu caderno de telefones é um
cemitério: uma cruz atrás da outra”). A bebida ajudou a segurar a onda,
mas cobrou seu preço.
"Cerca de 450 letras de canções, um
livro dentro do livro, mostram a inteligência poética de Aldir, capaz de
variar do registro da crônica malandra para o lirismo amoroso sem
vergonha"
Incompatibilidade de gênios
Mas sua vida foi,
sobretudo, de encontro com os parceiros, entre eles o mais contumaz e
siamês, o mineiro João Bosco. A ligação com João Bosco é uma história
quase fantástica, fruto da observação de um amigo, Pedro Lourenço Gomes,
que viu no estudante de engenharia que tocava num bar em Ouro Preto o
melodista ideal para as letras do estudante de medicina carioca. Em
caravana, numa Kombi, Aldir e amigos foram a Minas conhecer João Bosco. O
resto é história, recheada de clássicos como Agnus sei, Rancho da
goiabada, Mestre sala dos mares, Dois pra lá dois pra cá, Nação, O
bêbado e a equilibrista, Tiro de misericórdia, De frente pro crime e um
longuíssimo etc. Aldir se tornaria ainda amigo íntimo do pai de João
Bosco, com quem passava tardes em Ponte Nova chupando laranjas e bebendo
cerveja e a quem tornou personagem de canção. Mas, com o parceiro, o
que começou bem, como uma paixão, um dia se foi, como todas as paixões.
O
capítulo sobre o fim da parceria, com suas muitas teorias e fofocas, é
também ilustrativo do estilo dos amigos, hoje novamente reunidos. É
melhor ler sobre o divórcio artístico do que tomar partido numa
separação da qual os dois lados têm suas análises, coincidindo, no
entanto, que foi mais natural, por exaustão, que traumática, por
desavenças.
Para quem imagina inimizades perpassadas por ódios e
invejas, o que se escuta dos dois artistas é uma discordância estética
quase etérea. João Bosco se aprofundava em suas pesquisas rítmicas e,
com isso, as palavras passavam a ter uma função quase onomatopaica,
percussiva, tirando assim uma camada de sentido das letras. Aldir, ao
que parece, se sentiu desprestigiado, mesmo que em sua obra não seja
incomum utilizar as palavras pela força da sonoridade. Se houve um lado
bom nesse fim de caso foi a abertura dos dois artistas a novas
parcerias. No caso de Aldir, sobretudo com Guinga e Moacyr Luz, as mais
produtivas entre dezenas de outras. Para ficar apenas em clássicos, é só
lembrar do disco Catavento e girassol, de Leila Pinheiro, de 1996,
dedicado integralmente ao repertório de Aldir e Guinga.
O livro
sobre o poeta não ficaria completo sem uma antologia de letras de Aldir
Blanc. Com a colaboração da filha do compositor, Patrícia Ferreira, Luiz
Fernando Vianna reúne cerca de 450 letras de canções. Um livro dentro
do livro, mostra não apenas a inteligência poética de Aldir, capaz de
variar do registro da crônica malandra para o lirismo amoroso sem
vergonha, como sua sabedoria lexical (ninguém escolhe palavras exatas e
inusuais como ele na MPB, poucos criaram metáforas tão sublimes e
populares) e senso rítmico que faz balançar prazerosamente a leitura.
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