sábado, 4 de maio de 2013

MPB » Brasil em canções-João Paulo‏

Livros sobre o compositor e poeta Aldir Blanc e coletânea de entrevistas sobre a era dos festivais mostram importância da música como elemento de compreensão da dinâmica cultural do país  


João Paulo

Estado de Minas: 04/05/2013 


A música brasileira continua gerando bons estudos, reportagens e biografias, como mostram lançamentos recentes. O curioso é que, como já observaram os marxistas Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho há algumas décadas, a música popular no Brasil ocupa lugar cultural que, em outros países, é cativo da literatura. Ela seria nossa forma mais espontânea e rica de expressão e reflexão sobre a situação social do país. Sem se aprofundar na tese, o que chama a atenção é que, nascida no contexto da cultura popular, a música passa a ocupar o cenário acadêmico e jornalístico, ganhando com isso, a cada ano, uma bibliografia mais volumosa e expressiva.

É o caso de dois livros que acabam de chegar ao mercado. Em primeiro lugar a biografia Aldir Blanc – Resposta ao tempo – Vida e letras, do jornalista Luiz Fernando Vianna (Editora Casa da Palavra). Outro livro que vai contribuir para o conhecimento da MPB é o volume de entrevistas Uma noite em 67, dos documentaristas Renato Terra e Ricardo Calil (Editora Planeta). Eles partem de um ponto de vista próprio – um perfil e uma coletânea de entrevistas feitas para um documentário cinematográfico – mas trazem algumas identidades que se deslocam para propor novos enquadramentos acerca do lugar da canção popular na cultura brasileira. É nítido o foco na canção – poema entoado a partir de uma melodia. E a diferença de linguagem é um sinal de riqueza e da conquista de espaços para reflexão sobre o tema em livros, indo do jornalismo ao documentário cinematográfico.

Aldir Blanc – Resposta ao tempo – Vida e letras, de Luiz Fernando Vianna, é livro que andava fazendo falta, pela estatura e reserva do biografado, que nunca foi de aparecer muito e cultiva uma sábia discrição suburbana. O poeta, cronista e compositor Aldir Blanc, autor de mais de 600 canções e parceiro de nomes como João Bosco, Guinga, Maurício Tapajós, Cristóvão Bastos e Moacyr Luz, entre outros, ganha um perfil jornalístico consistente, escrito com paixão, mas sem puxa-saquismo, recheado de casos saborosos e informações de primeira mão. O autor entrevistou longamente seu perfilado, recuperando, desde a infância, o arco de realizações do artista, chegando aos nossos dias. É um retrato humano que é também a crônica do Rio além da Zona Sul, da época dos festivais, da ditadura militar, da emergência da indústria cultural, da consolidação do que chamamos hoje de música popular brasileira ou MPB.

Não faltam ao livro histórias de dor, dramas familiares, perdas e reveses. Mas também não fica de fora a verve de Aldir, seu jeito de levar a vida, seu humor nem sempre suave, sua sabedoria que não economiza uns cacetes quando necessário. Luiz Fernando Vianna, no entanto, atende ao interesse dos admiradores do poeta e concentra a maior parte de seu perfil na escolha de Aldir pela canção como forma de expressão de sua visão de mundo. Ele conta como Aldir resolveu apostar na música, como escreveu as primeiras canções, recorda a participação no movimento dos artistas universitários, o empurrão dado por Elis Regina e a militância entusiasmada nas hostes da boemia.

Aldir foi sempre um homem atormentado, até mesmo pelas circunstâncias familiares. Largou a psiquiatria em 1974, depois de militar no movimento em favor da humanização do atendimento (antipsiquiatria), por se sentir despreparado; com a morte das filhas gêmeas, logo depois do nascimento, abdica de vez da medicina (“Aí é o seguinte: se eu não salvo minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso que eu quero fazer”); perdeu muitos amigos ainda jovens (“Meu caderno de telefones é um cemitério: uma cruz atrás da outra”). A bebida ajudou a segurar a onda, mas cobrou seu preço.


"Cerca de 450 letras de canções, um livro dentro do livro, mostram a inteligência poética de Aldir, capaz de variar do registro da crônica malandra para o lirismo amoroso sem vergonha"


Incompatibilidade de gênios

Mas sua vida foi, sobretudo, de encontro com os parceiros, entre eles o mais contumaz e siamês, o mineiro João Bosco. A ligação com João Bosco é uma história quase fantástica, fruto da observação de um amigo, Pedro Lourenço Gomes, que viu no estudante de engenharia que tocava num bar em Ouro Preto o melodista ideal para as letras do estudante de medicina carioca. Em caravana, numa Kombi, Aldir e amigos foram a Minas conhecer João Bosco. O resto é história, recheada de clássicos como Agnus sei, Rancho da goiabada, Mestre sala dos mares, Dois pra lá dois pra cá, Nação, O bêbado e a equilibrista, Tiro de misericórdia, De frente pro crime e um longuíssimo etc. Aldir se tornaria ainda amigo íntimo do pai de João Bosco, com quem passava tardes em Ponte Nova chupando laranjas e bebendo cerveja e a quem tornou personagem de canção. Mas, com o parceiro, o que começou bem, como uma paixão, um dia se foi, como todas as paixões.

O capítulo sobre o fim da parceria, com suas muitas teorias e fofocas, é também ilustrativo do estilo dos amigos, hoje novamente reunidos. É melhor ler sobre o divórcio artístico do que tomar partido numa separação da qual os dois lados têm suas análises, coincidindo, no entanto, que foi mais natural, por exaustão, que traumática, por desavenças.

Para quem imagina inimizades perpassadas por ódios e invejas, o que se escuta dos dois artistas é uma discordância estética quase etérea. João Bosco se aprofundava em suas pesquisas rítmicas e, com isso, as palavras passavam a ter uma função quase onomatopaica, percussiva, tirando assim uma camada de sentido das letras. Aldir, ao que parece, se sentiu desprestigiado, mesmo que em sua obra não seja incomum utilizar as palavras pela força da sonoridade. Se houve um lado bom nesse fim de caso foi a abertura dos dois artistas a novas parcerias. No caso de Aldir, sobretudo com Guinga e Moacyr Luz, as mais produtivas entre dezenas de outras. Para ficar apenas em clássicos, é só lembrar do disco Catavento e girassol, de Leila Pinheiro, de 1996, dedicado integralmente ao repertório de Aldir e Guinga.

O livro sobre o poeta não ficaria completo sem uma antologia de letras de Aldir Blanc. Com a colaboração da filha do compositor, Patrícia Ferreira, Luiz Fernando Vianna reúne cerca de 450 letras de canções. Um livro dentro do livro, mostra não apenas a inteligência poética de Aldir, capaz de variar do registro da crônica malandra para o lirismo amoroso sem vergonha, como sua sabedoria lexical (ninguém escolhe palavras exatas e inusuais como ele na MPB, poucos criaram metáforas tão sublimes e populares) e senso rítmico que faz balançar prazerosamente a leitura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário