Por Apolo e por Asclépio
SÃO PAULO - Confesso que fiquei um pouco chocado com o artigo do médico e professor Luiz Eugênio Garcez Leme publicado na última segunda-feira na pág. A3 da Folha. O problema, evidentemente, não está no fato de ele defender posições pró-vida, mas no fato de fazê-lo invocando o juramento hipocrático.Embora eu entenda que a mulher deve ter o direito de decidir livremente se vai ou não dar sequência a uma gravidez, reconheço que existem alguns argumentos respeitáveis contra o aborto. O próprio professor tangencia alguns deles. Fica assim entre o ocioso e o desmedido recorrer a um texto de quase 2.500 anos cuja autenticidade e correta hermenêutica suscitam enormes dúvidas.
Para verificar os limites do juramento, basta lê-lo na íntegra. O original não veta apenas que o médico prescreva drogas letais e abortivas (medidas que têm a simpatia de Leme), mas também o proíbe de realizar cirurgias. A peça exige ainda que o médico trate seu professor como a um pai e com ele divida sua fortuna. A coisa é tão extemporânea que, não por acaso, surgiram várias versões modernas do juramento, que vão convenientemente jogando fora os aspectos mais polêmicos do texto.
É esse o ponto a que eu queria chegar: precisamos justificar nossas condutas com base em dados e argumentos, não em tradições. Não nego que uma prática antiga possa encerrar sabedoria, mas isso está longe de ser uma lei natural, em especial num mundo que muda rapidamente.
Nossos cérebros foram moldados para operar no Pleistoceno, época em que vivíamos em bandos de no máximo 150 parentes. Quando nos mudamos para cidades de milhares de habitantes, tivemos de atualizar a programação, recorrendo a leis e deuses imaginários. Agora que vivemos em megalópoles de milhões de pessoas dos mais diversos "backgrounds" culturais, precisamos ser capazes de trocar tradições envelhecidas por formulações racionais.
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