De todas as startups que surgiram no ano passado, a Fuzz é certamente uma das mais interessantes, e das mais desconsideradas. Descrevendo-se como uma "rádio movida a pessoas" e completamente "livre de robôs", a Fuzz contraria a tendência a depender cada vez mais de algoritmos para descobrir novidades na música. Ao contrário das populares rádios de Internet que dependem de recomendações feitas por algoritmos, a Fuzz celebra o papel dos DJs humanos --usuários comuns que são convidados a subir as músicas de que gostam para o site e criar "estações de rádio" pessoais.
A ideia, ou talvez esperança, por trás da Fuzz é que curadores humanos possam oferecer alguma coisa de que um algoritmo não seria capaz. Como disse Jeff Yasuda, o fundador da companhia, à Bloomberg News, em setembro passado, "existe grande necessidade de experiências mediadas e de retornar à crença de que as recomendações mais convincentes vêm de seres humanos".
Mas embora o lançamento da Fuzz tenha despertado pouca atenção, o crescente papel dos algoritmos em todos os estágios da produção artística está se tornando impossível de ignorar.
Recentemente, esse papel foi destacado por Andrew Leonard, crítico de tecnologia do site "Salon", em um artigo intrigante sobre "House of Cards", a controvertida série que marca a estreia da Netflix na produção de programas de TV. O mito original da série já se tornou bem conhecido: tendo estudado os registros sobre o comportamento de seus usuários, a Netflix descobriu que uma versão norte-americana de "House of Cards", uma série britânica, poderia ser um grande sucesso, especialmente se o elenco contasse com Kevin Spacey e a direção coubesse a David Fincher.
"Será que o autor poderá sobreviver em uma era na qual algoritmos de computador são o painel de discussão soberano?", perguntou Leonard, imaginando de que maneira o imenso volume de dados recolhido pela Netflix junto aos usuários que assistiram à primeira temporada --quantas vezes eles apertaram o botão de pausa? - afetaria os futuros episódios.
Muitos outros setores enfrentam questões semelhantes. Por meio de seu leitor eletrônico Kindle, por exemplo, a Amazon recolhe vasto volume de informações sobre os hábitos de leitura de seus compradores; que livros eles terminam e que livros abandonam; que trechos dos livros são pulados e que trechos são lidos mais atentamente; com que frequência eles verificam determinadas palavras no dicionário, e quais são os trechos que eles costumam sublinhar.
Com base em todos esses dados, a Amazon é capaz de prever que ingredientes farão uma pessoa ler um livro até o fim. Talvez a companhia passe a oferecer finais alternativos --para deixar o leitor mais feliz. Como afirma um recente estudo acadêmico sobre o futuro do entretenimento, vivemos em um mundo no qual "as histórias podem se tornar algoritmos adaptativos, criando um futuro mais envolvente e interativo".
Da mesma forma que a Netflix descobriu que, tendo em vista o vasto volume de dados acumulados, seria tolo não ingressar no ramo de produção de filmes, a Amazon descobriu que seria tolo não ingressar no ramo editorial. O conhecimento da Amazon, porém, é mais profundo que o da Netflix, porque ela também opera um site no qual compramos livros, e isso lhe dá todas as informações de que precisa sobre o nosso comportamento como compradores e os preços que estamos dispostos a pagar. Hoje, a Amazon opera sete selos editorais, e planeja acrescentar novas marcas.
O setor de música, igualmente, adotou com avidez métodos parecidos, anos atrás, usando seus vastos bancos de dados sobre sucessos e fracassos do passado para prever se as músicas enviadas para possível produção tinham chance de se tornarem grandes sucessos. A vantagem nesse caso é evidente: o músico já não precisa de boas conexões pessoais --no passado um pré-requisito essencial para o sucesso-- se deseja obter um contrato; basta que tenha uma canção que, baseada em passadas tendências, indique probabilidade de sucesso.
Mas a desvantagem é igualmente evidente: podemos terminar com canções muito chochas, todas altamente parecidas. Como afirma George Steiner em "Automate This" (2012), técnicas como essas podem "nos trazer novos artistas, mas porque baseiam seu julgamento naquilo que foi popular no passado, provavelmente teremos o mesmo pop esquecível que já temos. Que tantos anos de música morna estejam incluídos na análise é um problema claro dessa tecnologia".
O supercomputador Watson, da IBM, já está vasculhando milhares de documentos judiciais e médicos a fim de conduzir avaliações que advogados e acadêmicos seriam incapazes de realizar --ou ao menos não se tivessem de avaliar tamanho volume de material. Se o objetivo é analisar aquilo que vendeu bem no passado e tentar prever, com base em todos esses influxos de dados, o que tem chance de vender bem no futuro, seria fácil expandir o uso do Watson à música, filmes e livros.
Infelizmente, essa expansão, embora beneficie as vendas, pode prejudicar a inovação cultural. Será que o Watson teria sido capaz de prever --se já existisse então-- a ascensão da pintura impressionista, a da poesia futurista ou a do cinema da Nouvelle Vague? Teria aprovado Stravinsky? Um sistema Big Data provavelmente não teria apostado no dadaísmo.
Para compreender os limites e oportunidades que os algoritmos oferecem, no contexto da criação artística, precisamos compreender que esta última em geral consiste de três elementos: descoberta, produção e recomendação. Empresas iniciantes como a Fuzz cuidam do último elemento --a recomendação-- com a esperança de que haja quem prefira recomendações humanas a algoritmos.
A FiveBooks aplica um modelo semelhante aos livros; nesse caso também a lógica é a de que os seres humanos podem oferecer resultados melhores que os algoritmos. A Amazon oferece ótimas recomendações, mas a FiveBooks, com recomendações de livros seletas apresentadas por pessoas como Paul Krugman, Harold Bloom e Ian McEwan, joga em outra divisão. O segmento de recomendações é aquele no qual as recomendações humanas e as de algoritmos provavelmente poderão conviver, ao menos pelo futuro previsível, enquanto os usuários encontram o balanço ideal entre as duas.
Mas quando se trata de descobrir novos talentos e da produção subsequente de seus trabalhos, as coisas parecem muito mais sombrias. Afinal, a recomendação só importa se existir grande arte a recomendar. Se essa arte é selecionada com base em sua probabilidade de repetir o sucesso de passadas escolhas, e se ela for produzida com base nas reações imediatas da audiência, as vendas podem crescer mas quais serão as chances de que surja algo de verdadeiramente radical, de toda essa parafernália de vendas?
Em dezembro de 2012, o "Global Times", um jornal chinês que circula em inglês, publicou um artigo sobre a Bear Warrior, uma banda punk local que descobriu uma maneira engenhosa de medir a reação da audiência às suas canções. O vocalista é aluno de pós-graduação em uma universidade de Pequim, e está se especializando em instrumentos de precisão; por isso, projetou um aparelho chamado "POGO Thermometer" para medir a intensidade da dança da audiência por meio de uma série de sensores instalados em um tapete estendido no piso da casa de shows. Os sinais são em seguida transmitidos a um computador central e analisados detalhadamente.
De acordo com o "Global Times", a banda constatou que os fãs "começavam a mover seus corpos quando a bateria entra, e dançavam com mais energia nos agudos do vocal". Nas palavras do vocalista, "os dados nos ajudam a compreender como melhorar nosso desempenho e fazer a audiência responder à nossa música da maneira que pretendemos".
Talvez isso ajude mesmo a melhorar o desempenho, mas desde quando o punk é assim bonzinho? Fazer a audiência feliz é coisa que obceca consultores de gestão, não músicos punk. O Sex Pistols só teria um uso para o tapete equipado com os sensores, e podem ter certeza de que não envolveria os sensores. Mas o Sex Pistols, desconsiderando o retorno imediato, iniciou uma revolução, enquanto o Bear Warrior na melhor das hipóteses vai lançar uma carreira.
Tradução de Paulo Migliacci
Evgeny Morozov é pesquisador-visitante da Universidade Stanford e analista da New America Foundation. É autor de "The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom" (a ilusão da rede: o lado sombrio da liberdade na internet). Tem artigos publicados em jornais e revistas como "The New York Times", "The Wall Street Journal", " Financial Times" e "The Economist". Lançará em 2012 o livro "Silicon Democracy" (a democracia do silício). Escreve às segundas-feiras, a cada quatro semanas, no site da Folha.
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