MEMÓRIA
Nostalgia ambígua
Os últimos dias do estádio do Grêmio
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MICHEL LAUB
HÁ VÁRIOS CEMITÉRIOS nas proximidades do estádio Olímpico, em Porto Alegre. Também um crematório e funerárias. Também casas e ruas onde eventualmente alguém infarta, leva um tiro ou é atropelado.
Mas o luto que impregna a região por estes dias é mais amplo: um mundo e um tempo estão morrendo à medida que o Grêmio joga suas últimas partidas em sua sede histórica. A partir de 8/12 ela será substituída pela Arena, na zona norte, e a construção ovalada onde o clube gaúcho fez suas principais campanhas ao longo de 109 anos de existência será implodida.
Na quarta-feira, 5/9, fui pela última vez ao Olímpico. Considerando que estive em 90% das partidas do time na cidade entre 1985 e 1997 (quando vim morar em São Paulo), e calculando uns 25 jogos por ano, mais uns tantos antes e depois desse período, a vitória contra o Atlético Goianiense pela 22ª rodada do Campeonato Brasileiro foi algo como minha 300ª visita ao local.
Muita coisa mudou em três décadas, e em vários sentidos ir a um estádio se tornou mais civilizado. Não há mulheres assediadas, racismo em voz alta, sacos de urina voadores. Não há superlotação, correrias porque alguém puxou uma faca, gente desabando de marquises. As arquibancadas não balançam como se fossem cair, e a violência quase sempre acontece longe, em brigas agendadas pelas redes sociais.
ANACRONISMO Mesmo assim, resquícios de uma época em que o futebol era menos organizado e mais provinciano, um circo amador comparado à eficiência mercantil e globalizada de hoje, são visíveis no entorno do Olímpico. A avenida Azenha ainda tem lojas de nomes como Perucas Jurema e Tchê Pastel. Na José de Alencar, as casas ainda fazem de suas garagens estacionamentos improvisados. No largo dos Campeões, ainda dá para comer espetinho com um pedaço de gordura para dois de carne dura e seca. A velha polícia a cavalo observa o movimento de bêbados e biscateiros.
"Não faz sentido manter um estádio deficitário, que existe basicamente para receber jogos", diz o jornalista Marcelo Ferla. Autor do recém-publicado "Jogos Monumentais" (Ed. Arquipélago), livro sobre os 15 maiores momentos do Olímpico, que sucedeu ao antigo Estádio da Baixada (1904-54), ele e a maioria dos gremistas apoiam a cessão do terreno para a construtora OAS, que em troca ergueu a Arena e explorará seu entorno -uma série de construções residenciais e comerciais cercadas pelo que hoje é uma favela.
O novo estádio não sediará partidas da Copa do Mundo -eles serão no Beira Rio, do Internacional-, mas tem modelo semelhante ao de projetos que estão sendo executados por todo o país: da casa presenteada ao Corinthians em Itaquera aos novos Maracanã, Mineirão e Fonte Nova, ir a um jogo no Brasil será uma experiência de conforto, segurança e acesso semelhante à que se tem na Europa.
Já o Olímpico fica para trás levando uma nostalgia ambígua: ao mesmo tempo em que não se lamenta a substituição dos túneis estreitos, banheiros sujos e concreto rachado por infiltrações, é como se o espaço físico anacrônico simbolizasse um modo também anacrônico de viver o futebol.
ALMA CASTELHANA Foi ali que se criou uma espécie de "ethos". Há fatores históricos que contribuíram para a imagem (ou clichê) do Grêmio como clube-símbolo do futebol aguerrido, obstinado e "imortal" -da origem alemã dos fundadores ao estilo de técnicos vitoriosos como Osvaldo Rolla e Luiz Felipe Scolari.
Há também eventos de jogo: viradas espetaculares, gols no último minuto, oscilações heroicas e trágicas que levaram o clube do título mundial à Segunda Divisão. E há fatores extracampo, diretamente ligados ao ambiente do Olímpico: invasões e interdições, juízes sitiados nos vestiários, a torcida e sua "avalanche" rumo ao poço.
Claro que é uma especificidade construída, e nada impede que ela seja reproduzida na Arena, mas um dos riscos de obsolescência se deve à uniformização crescente do esporte.
A "alma castelhana" do Grêmio, em litígio eterno contra a CBF, árbitros e imprensa do centro do país, orgulhosa de haver estragado tantas festas de adversários mais ricos e melhores -o Flamengo de Zico nos anos 1980, o Palmeiras da Parmalat nos 1990-, combina pouco com uma era em que não se diferenciam o discurso dos atletas, os métodos de preparação física, as estratégias de marketing das diretorias.
As bravatas sobrevivem, mas dentro de campo o time seguirá como qualquer outro, com variações táticas ditadas por técnicos que trocam de emprego entre si, com ídolos que seis meses antes vestiam outra camisa e seis meses depois vestirão uma terceira.
BANGUELAS Nesse contexto, seria estranho se o perfil das torcidas não tivesse acompanhado as mudanças. Um dos efeitos da transformação do futebol em negócio bilionário foi o deslocamento da receita dos clubes, antes quase toda saída da bilheteria, para cotas de TV, patrocínios e licenciamentos, quadro social e venda de jogadores.
Não há mais lugar para o lúmpen avulso, banguela e espontâneo que aparece segurando um radinho de pilha em vídeos dos anos 70 e 80. Ele foi substituído pelo sócio de classe média e, na imensa maioria, pelo espectador de sofá, cuja ação se dá pelo consumo -no "pay per view" ou indiretamente, como audiência que gera publicidade. Isso torna mais elitizadas -e parecidas em sua identidade- as agremiações que canalizam as energias de um esporte popular e tribal.
Desde que vim para São Paulo, faço parte dessa massa difusa, cuja relação mais próxima com outros torcedores são xingamentos pela janela do prédio. Num tempo com tantas opções de lazer, é difícil convencer alguém de que um programa de domingo ou quarta era caminhar por uma hora e meia, às vezes na chuva, no frio e na escuridão, para ver partidas de fases classificatórias de campeonatos gaúchos destinados ao esquecimento.
A precariedade do Olímpico ajudava a compor essa relação direta: um portão às vezes destrancado dava acesso aos vestiários, e os jogadores andavam sozinhos pelo pátio na saída dos jogos. Vai saber quanto de meu envolvimento não se deve a sensações alheias a quem cresceu vendo o time em HD: a escala integral do campo, o som amplificado da charanga, o cheiro de pólvora dos rojões, o gosto de bergamota e amendoim vencido.
LUNATISMO Se a identificação com um clube se deve tanto a questões geográficas, étnicas, culturais e de classe quanto a resultados de campo, com as torcidas guardando em sua composição etária o que José Miguel Wisnik chama de "espectro da história dos campeonatos", dá para transferir o critério estatístico para a massa gremista do futuro. Ela será dividida entre os que conheceram ou não o atual estádio. Os que viveram ou não um outro futebol e uma outra cultura.
É uma espécie de solidão também: entre os 46.309 presentes em Grêmio x Atlético Goianiense, quantos lembrariam de como surgiu a tese "goleiro não pode ter bigode"? Ou da cor da camisa da sorte usada pelo "Doutor Gre-Nal"? Ou do que sonhou o centroavante Lima na noite anterior a um 3 a 3, 1988, em que o zagueiro Aloísio fez um gol contra desviando uma cobrança de falta?
Encolhido na cadeira G-190, vivi aquela última noite tentando abstrair os indícios de um ciclo que se encerra: a miopia recente que dificulta a visão noturna, a estranheza de ver lances sem o replay que esclarece dúvidas, a ausência do companheiro mais frequente em partidas na infância -meu irmão, cuja primeira filha nasceria na manhã seguinte.
Há muitas maneiras de se sentir velho, e uma delas é confundir a própria decadência com a decadência do universo. Antes de passar pela roleta, subir a escada e ver o gramado que nunca mais verei, estive no memorial que o Grêmio mantém com troféus, fotos, uniformes antigos.
Uma TV passava vídeos de jogos históricos, e me vi antecipando para um gordinho de uns dez anos o placar e os autores dos gols. A melancolia da cena não era apenas pelo estádio que irá ao chão, nem pela cidade onde não vivo mais, nem pelo que o pai do gordinho devia estar pensando de um lunático capaz de recitar todos aqueles nomes e histórias, mas porque estou chegando aos 40 e isso talvez tenha mesmo perdido o sentido.
Então resta virar a página e fazer o registro derradeiro. Placar do último embate: 2 a 1. Autor do último gol que assisti ao vivo: Marino, do Atlético Goianiense. Autor do último gol do Grêmio: Elano.
Adeus, Olímpico, e obrigado por tudo.
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O time seguirá como qualquer outro, com variações táticas ditadas por técnicos que trocam de emprego entre si, com ídolos que seis meses antes vestiam outra camisaA massa gremista do futuro será dividida entre os que conheceram ou não o atual estádio. Os que viveram ou não um outro futebol e uma outra cultura.
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