ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
O inédito de Agamben
Veneza, 2007
Tive meu primeiro contato com a obra do filósofo italiano Giorgio Agamben no início dos anos 90. Alberto Pucheu, poeta, ensaísta, professor de teoria literária e grande amigo, tinha me dado de presente uma edição especial, numerada a mão, de "La Fine del Pensiero", um texto que logo depois saiu como anexo do livro "A Linguagem e a Morte", publicado pela primeira vez na Itália em 1982. Meu exemplar é o de número 141.
Quando fomos pegar Agamben no aeroporto Santos Dumont, em setembro de 2005, eu e Pucheu tivemos a mesma ideia e levamos nossos exemplares para ele autografar. Ao vê-los em nossas mãos, perguntou surpreso: "onde vocês conseguiram isso?" A partir dali, construiu-se uma relação de amizade entre nós que perdura até hoje.
Conheci a obra de Agamben no mesmo momento em que me aproximava da psicanálise de Jacques Lacan e desde o início percebi uma conexão íntima (mas nebulosa) entre os escritos de ambos. Em um almoço durante os cinco dias que Agamben passou no Rio em 2005, perguntei a ele sobre a conferência que ele fizera no colóquio "Lacan avec les Philosophes", realizado pelo Collège International de Philosophie, em Paris, quando ele era um dos seus diretores de programa.
Publicado em 1991, pela Albin Michel, o livro, que reúne as conferências proferidas durante o colóquio, traz na apresentação uma nota de rodapé onde se lê: "O professor G. Agamben não enviou sua comunicação para a edição". Perguntei a ele por que não o enviara e ele respondeu que o texto ainda se encontrava escrito à mão, que ele jamais o tinha digitado. Disse então que iria a Veneza para conhecer esse texto. E assim o fiz.
Em 2007, vindo de Florença, passei dois dias em Veneza e o procurei. Encontrei-o às margens do Grande Canal, no terraço de um restaurante, com dois estudantes. Ele estava bronzeado do verão da Itália (era julho) e muito bem-humorado. Digo a ele que vim a Veneza conhecer o manuscrito.
Após o jantar, caminhamos à noite pelos labirintos desertos de Veneza que Agamben conhece como ninguém e combinamos de eu ir almoçar em sua casa no dia seguinte para ver o texto. Cheguei ao seu apartamento, em Dorsoduro, e encontrei o tradutor alemão de "O Reino e a Glória", que estava em Veneza para tirar dúvidas com o autor sobre a tradução.
Agamben preparava um peixe cuja receita aprendera em sua recente visita a Lisboa. Durante os preparativos do almoço, tirei algumas fotos dele cozinhando, sem nenhum protesto de sua parte.
Ele me mostra o manuscrito, diz que tem coisas muito boas e promete enviar uma cópia para mim pelo correio tão logo eu voltasse ao Brasil. Nunca o fez, o que me obrigou a retornar a Veneza no inverno de 2009, por um período de três semanas, para ter encontros quase diários com ele, em que conferíamos a digitação do texto que eu fazia durante o dia. Concluído o trabalho, ele ficou de me enviar a versão final do texto para ser publicada no Brasil. Mais uma vez, não o fez.
Em 2011, em Perugia, participando de um Simpósio Internacional de Fenomenologia, ligo para ele, que estava numa casa de campo de uma amiga nas proximidades de Roma. Sem que eu pergunte nada, ele me diz: "sabia que peguei o ensaio sobre Lacan para trabalhar outro dia?" Contentei-me em dizer um "Da vero?" em resposta.
O destino do texto ainda parece uma incógnita. Tenho comigo uma fotocópia do original manuscrito que folheio às vezes. Mas, para mim, tudo parece se justificar pelas fotos tiradas durante o almoço no terraço de seu apartamento em Veneza. Uma delas viria a figurar, anos depois, na capa da tradução brasileira, feita por mim, de "O Homem Sem Conteúdo" (Autêntica).
(Coincidentemente, há alguns dias, depois de já ter escrito este texto, recebi um e-mail de Agamben dizendo que me enviará a versão final do ensaio em poucos dias. Será?)
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