domingo, 25 de novembro de 2012

Sem pecado e sem juízo [Baby Consuelo ou 'do Brasil']


REVISTA SERAFINA
Sem pecado e sem juízo
A cantora Baby do Brasil não quer mais saber só de gospel; tirou do baú os sucessos dos anos 1970, 1980 e 1990 para um show organizado por um de seus seis filhos, Pedro Baby, que ocupa o lugar do pai, Pepeu Gomes, na guitarra
Foto Murillo Meirelles
ADRIANA KÜCHLERENVIADA ESPECIAL AO RIODe cabelo roxo, iPad branco na mão e mala de oncinha trazendo vários "looks" para a sessão de fotos que ilustra a reportagem, Baby do Brasil chega ao estúdio, no bairro de Laranjeiras, animada para falar sobre sua nova fase. Pastora pop e mãe de seis filhos, a cantora de 60 anos está de volta e pronta para reconquistar um novo público com seu repertório de hits pré-conversão.
Não, ela não largou o gospel, com que anda abraçada há 13 anos. Mas, a convite do filho número quatro, o guitarrista Pedro Baby, decidiu dar nova chance aos velhos sucessos. Antes de começar a explicar esse retorno, não se aguenta e solta um: "Obrigada, Senhor, por esse momento maravilhoso!" Deus vai aparecer outras 32 vezes durante a conversa (nas versões Deus, Senhor e Papai) ou uma vez a cada quatro minutos.
Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade começou a cantar aos 17 anos, como Baby Consuelo, quando acompanhava a banda formada por Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Galvão e Pepeu Gomes, os Novos Baianos. Atravessou os anos 1980 com cabelos coloridos e lançou uma penca de hits solo como "Sem Pecado e Sem
Juízo", "Telúrica" e "Todo Dia Era Dia de Índio". Adotou o nome Baby do Brasil em 1995 e saiu da cena pop quando virou pastora evangélica, ou "popstora", como gosta de dizer. E abandonou o que chama de repertório secular (não religioso).
Essa volta foi uma espécie de presente do filho pelos 60 anos da mãe. Na hora de escolher o set list, ela perguntou: "Que música do gospel você vai incluir?" E teve que ouvir: "Nenhuma, né, mãe?" Baby só relaxou depois de se dar conta de que quase todas as canções escolhidas tratavam de espiritualidade. "As músicas dela sempre falaram de Deus, é só olhar", diz Pedro, 34. "A conversão não mudou a Baby, essa cantora sem herdeiras. Era isso o que eu queria mostrar para o público."
ELVIS E EU
O primeiro show da volta de Baby aconteceu no Rio, no fim de outubro, com participação de Caetano Veloso em "Menino do Rio", hit que compôs para ela em 1979. Depois da aclamação de crítica e público, saudosos da voz única e praticamente intacta de Baby ("As pessoas ficaram em estado de graça. Tem uma unção do céu no show", diz ela), mãe e filho preparam uma turnê que já tem shows marcados no Rio, em Salvador e em Recife e deve virar CD e DVD.
Caetano, que também participa do show na Bahia, diz em depoimento para Serafina que "Baby é uma referência central na história do canto feminino brasileiro. Novos Baianos, Baby e Pepeu, Baby do Brasil. Hoje, tem incorporada toda a gama de personas públicas que criou e, mais importante, canta melhor do que nunca".
"Parece que o desenvolvimento espiritual repercutiu na percepção musical", afirma o cantor. Em sua coluna no jornal "O Globo", Caetano já havia ditado que Baby está "mais consciente musicalmente, enriquecida pela onda pentecostal". Os produtores Paula Lavigne, ex de Caetano, e Diogo Pires Gonçalves, marido de Marisa Monte, são os empresários do show.
"Vou ser a primeira pessoa no Brasil e talvez na América do Sul a transitar entre os dois mundos, o gospel e o secular", diz Baby. "Os Estados Unidos tinham o Elvis, que circulava muito bem. Mas aqui isso é uma coisa inédita, precursora."
Baby sabe bem o que é ser precursora. Em 1969, a niteroiense, filha de um procurador e uma jornalista, fugiu para a Bahia, onde conheceu Caetano, Gilberto Gil e seus futuros companheiros dos Novos Baianos. Encantou-se primeiro com Gil: "Nunca tinha visto um cara dessa cor tão poderoso e honrado nesse Brasil. Pensei: 'Quero casar com ele'". Mas Gil já estava casado e foi no guitarrista Pepeu que a garota tascou um beijo logo no primeiro dia. Os dois foram morar embaixo da ponte de Piatã, em Salvador. Ficaram juntos pelos 18 anos seguintes.
Bernadete Dinorah, a "falsa baiana" de nariz arrebitado, ganhou o nome de Baby Consuelo (personagem do filme "Meteorango Kid, Herói Intergalático", de 1969) e virou a cantora do grupo. Logo, os Novos Baianos foram viver juntos, em apartamentos em São Paulo e no Rio e depois no sítio Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá. Com a ditadura pegando lá fora, viraram sinônimo de um estilo de vida "hippie-comunitário" nos anos 1970. "Do lado de fora, era a ditadura. Dentro, era a cosmocracia. Cada um fazendo sua parte em prol do todo", conta Baby. A comunidade era flutuante e recebia visitas. Uma das que mais influenciou o grupo foi João Gilberto.
"Fiz um lugar para ele tocar dentro do armário embutido e enchi de edredons porque tinha mais acústica. E eu ficava no pé da cama só ouvindo", conta a cantora. "Uma vez, eu cochilei, e o João falou assim: 'Você é a primeira pessoa que dorme enquanto eu tô cantando...'"
Há 40 anos, em 1972, os Novos Baianos lançaram "Acabou Chorare", com uma sequência de clássicos como "Preta Pretinha", "Brasil Pandeiro", "A Menina Dança" e "Tinindo Trincando", e se tornaram um dos grupos mais importantes da música popular e do rock nacional.
"Na época, Caetano e Gil estavam fora do Brasil, era repressão total. Todo mundo saindo do país e a gente ali, profetizando que tinha acabado o choro, que tudo ia melhorar."
Para aliviar um pouco a pressão do mundo real, a galera do sítio fumava maconha. Baby não gosta muito de falar sobre o tema. Diz que as drogas não eram uma bandeira do grupo. "O Brasil inteiro fumava maconha. O que a gente queria era dar aquela relaxada. Para algumas pessoas, a maconha faz surtar. Graças a Deus, ninguém ali teve esse lado esquizofrênico", agradece. "A maconha foi a droga de escape de uma geração oprimida. Hoje, não temos uma polícia no nosso pé. A maconha é totalmente desnecessária."
TELÚRICA
Com a mão suja de tinta roxa que ainda sai do cabelo recém-pintado e sempre se olhando no espelho, Baby diz que hoje é mais fácil entendê-la. "Eu não tinha a postura de cantora que se pedia naquela época, um tipo intelectual", argumenta. "Inaugurei essa coisa de a cantora poder ter seis filhos, dizer que um homem feminino não fere o seu lado masculino para o próprio marido. Ninguém conseguia me definir: ela é cantora, socióloga, muito louca ou uma menininha?"
"Chegaram a dizer que eu era a mulher dos 'nove baianos'. Falei: 'Não são nove, não! São 17 e eu sou a mulher só do Pepeu'. Sabia que naquela época ninguém ia entender. Tinha que deixar o tempo passar."
Uma coisa que pouca gente entende até hoje é de onde veio a leva de nomes esquisitos com que batizou seus filhos: R'iroca, Zabelê, Nãnashara, Pedro Baby, Krishna Baby e Kriptus Rá. Dos seis, só a primeira trocou de nome. Virou Sarah Sheeva.
"R'iroca (a pronúncia do primeiro erre é mais suave), em tupi-guarani, é a casa do amor. Era um apelido carinhoso que Pepeu me deu. Depois, vi que gerava muito 'bullying'. Nunca tinha passado pela minha cabeça essa maldade do homem", diz Baby. "Mas sempre falei pra eles: 'Cara, vocês me desculpem. Se eu errei com os nomes, vamos lá que a gente troca'."
Nos anos 1980, Baby entrou na onda do paranormal Thomaz Green Morton, famoso por entortar metais com a força do pensamento e gritar "Rá!", berro que Baby repetia a torto e a direito por aí. "Já estava nessa parada espiritual. Começaram a acontecer coisas: os talheres entortavam, água virava óleo, papel virava ouro. Tinha certeza que Deus estava na minha vida até que descobri que aquilo não era de Deus."
No fim dos anos 1990, Baby descobriu "o que era de Deus" e virou evangélica. Dedicada à religião, foi promovida a evangelista, pastora e apóstola. Criou a própria igreja e hoje se diz uma "popstora" (pastora pop). Parte da família aderiu à causa e duas de suas filhas também pregam. Mas a conversão provocou arrepio nos amigos.
"Todo mundo ficou horrorizado: 'A Baby pirou de vez?' Ninguém sabia se eu ia colocar um saião, fazer um coque, pegar a Bíblia e ficar na esquina feito louca... Aos poucos, viram que não era assim, que meu cabelo continuava roxo. E que eu estava muito mais louca e livre."
A única coisa que mudou de verdade, diz Baby, é que ela evita tudo que remeta à sedução. "Não é bom que a gente tenha esse tipo de procedimento porque ele traz o engano. É como aquele cara que seduz a menina, transa com ela e, no dia seguinte, nem lembra. E ela fica lá toda defraudada..."
O coração de Baby parou com o eterno flerte. Está solteira e sem sexo há 13 anos. "Desde que eu me converti. Mas tá boooom! Não sinto falta. Consagrei essa minha área sexual a Deus", diz. "Não tenho condição de ter esse controle da minha carne porque eu sempre fui casada, desde os 17 anos. [Primeiro, com Pepeu, que se casou de novo e teve mais uma filha, e depois com outro guitarrista, Nando Chagas]. Então, essa área sexual, que é maravilhosa, é uma área de Deus."
"Com isso, me livrei de decepções, ciúmes... Há 13 anos, não tenho uma série de problemas que todo mundo enfrenta todo dia... Rarará", se diverte. "Queria experimentar como era estar novamente com oito, nove anos, ser criança: 'Êee!' Entendeu?"
A menina de 60 anos prova seu vestido azul rodado, comprado na marca de "fast fashion" Forever 21, enquanto canta: "Tuuuudo azul, Adão e Eva no Paraíso". "Quando provei, disseram que eu parecia uma princesa da Disney", ri. Controla toda a atividade da maquiadora ("Mais glitter! Tem estrelinhas? Cuidado pra não ficar igual a Amy Winehouse! Glória a Deus!") e conta que perdeu 13 quilos recentemente com a dieta do HCG (hormônio da gravidez). Faz tratamento com medicina ortomolecular há 13 anos, mas continua "esquecendo de raspar debaixo do braço".
"Não se faz mais 60 anos como antigamente. Tô inteirona. Com 80, vou ser a melhor guitarrista do Brasil. Vamos dançar, curtir e falar com Papai!"
Já com o look "tudo azul", Baby se prepara para o ensaio de fotos. Mas, antes, ela pega a guitarra, sua nova parceira ("No começo, não dava porque a barriga crescia toda hora"), e começa a cantarolar "Menino do Rio".
Já na primeira estrofe, Baby troca a letra da música, mas não por esquecimento. Em vez do dragão do menino de corpo aberto no espaço, prefere "Jesus Forever tatuado no braço". A menina ainda canta.

Baby ao vivo, graças a Deus
ZECA CAMARGOESPECIAL PARA A FOLHA
NA PLATEIA DO ÚNICO SHOW QUE A CANTORA FEZ ATÉ AGORA COM O REPERTÓRIO CLÁSSICO DE SUA CARREIRA PRÉ-EVANGÉLICA, O JORNALISTA TEM REVELAÇÕES CÓSMICAS
Sei tanto sobre o significado das cores quanto sobre o pensamento das flores. Mas, quando Baby do Brasil entrou no palco do Jockey Clube do Rio, no final do mês passado, eu senti o frisson que os "fashionistas" expressam quando veem seu tom favorito de volta à passarela -e logo entendi o que aquilo significava. "O roxo voltou", disse eu a mim mesmo diante da nova cabeleira de Baby, que puxava para sua saia. E, com o roxo, eu sabia que viriam outras coisas boas, outros sons, outras luzes, outras rimas, outras danças, outras cores, nomes.
Assim foi por quase duas horas, numa noite histórica -um adjetivo que uso com parcimônia. No entanto, quem já tinha perdido as esperanças de ver Baby cantar outra coisa que não o gospel da religião que abraçou há mais de uma década não tem como chamar uma apresentação dessas de outra coisa que não "histórica". De "Mexe Comigo" a "Sem Pecado e Sem Juízo", todas as canções que você fez questão de esquecer que sabia de cor estavam lá. Mas, mais que isso, a própria Baby estava presente como nunca, cheia de energia, hipnótica e magnética -até mesmo "cósmica", para usar mais um proparoxítono de que ela tanto gosta (alguém aí pensou em "telúrica"?). No palco, enfim, uma verdadeira pastora, cantando para fiéis pagãos da Igreja Maior do Bom Refrão.
Perguntas como "por onde andava essa Baby?" tornavam-se irrelevantes à medida que cada um de nós descobria que sabia todas aquelas "músicas-mantras" de cor. E, com seus 60 anos, Baby cantava tudo com a mesma voz que nossa memória tinha guardado, como que desafiando um grupo de seletas cantoras de gerações subsequentes que fizeram questão de ir até lá presenciar aquele retorno. Era, esse sim, o verdadeiro Culto das Princesas.
Generosa, Baby emprestava seus "raios de ouro cor" (para citar mais uma vez "Telúrica") para Caetano Veloso, que veio com ela evocar "Menino do Rio"; para seu filho Pedro Baby, que fez o incrível trabalho de convencê-la a conversar com Deus e pedir aprovação para voltar a cantar tudo aquilo de novo; e para cada súdito ali presente, finalmente despertado de uma hibernação forçada de anos. Com tudo isso, com os espíritos tão elevados, só mesmo uma outra diva poderia nos ajudar com um verso à altura da homenagem que aquela estrela pedia. Pensei em Gal Costa cantando: "Baby, I love you..."

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