“Um dos prazeres de se escrever (e, imagino, de atuar,
compor, pintar) é ampliar a própria existência, encontrar
novos canais de comunicação consigo e com o mundo”
Desde que comecei a escrever, e lá se vão mais de 25 anos, sempre
fui reconhecida como uma voz legitimamente feminina. Não raro
me chamavam, com exagero, de porta-voz das mulheres. Ora,
não sou porta-voz nem de mim mesma. As mulheres são distintas
entre si, nossas porta-vozes precisam ser múltiplas — e são. E os
homens também se identificam com o que escrevo, o que é ótimo,
pois demonstra
que temos as mesmas
inquietações e retira do
meu trabalho o tom
cor-de-rosa que me enjoa.
Na verdade, o que
reconheço em mim é
uma voz unissex.
No entanto, sou mulher,
com existência sexual,
maternal e comportamental
feminina,
e isso vaza para o que
escrevo. De mim saiu a
Mercedes, do “Divã”, e
a Beatriz que Cissa
Guimarães levou aos
palcos na peça “Doidas
e santas”. O único livro
em que criei personagens
masculinos mais
delineados foi “Tudo
que eu queria te dizer”,
que contém 35 cartas
que narram situaçõeslimite
vividas por homens
e mulheres — e
as cartas assinadas pelas
mulheres também
ganharam adaptação
teatral num lindo monólogo
com Ana Beatriz
Nogueira.
Ou seja, sempre que
minhas palavras subiram
ao palco, era a minha voz feminina que entrava em ação, reforçando
a imagem de ser uma autora “só para garotas”.
Pois finalmente vivi uma experiência que ratificou que posso ir
além dessa zona de conforto. As cartas masculinas do livro também
foram para o teatro: estão em cartaz no Rio na peça “Também
queria te dizer”, com Emilio Orciollo Netto, a que assisti semana
passada. Saí do Centro Cultural Midrash emocionada: foi
gratificante comprovar que os textos daqueles personagens masculinos
poderiam realmente ter sido escritos por um homem.
Emilio, dirigido por Victor Garcia Peralta, deu a virilidade justa a
cada um dos seis papéis que interpreta, e ajudou a reforçar meus
argumentos quando me perguntam se a literatura feita por mulheres
é diferente da feita por homens: não necessariamente. Não
quando se consegue imergir numa aventura fictícia e emergir dela
sem deixar rastros do gênero a que se pertence.
Um dos prazeres
de se escrever (e,
imagino, de atuar,
compor, pintar) é
ampliar a própria
existência, encontrar
novos canais de comunicação
consigo e
com o mundo. Meu
exercício literário
sempre orbitou em
torno de um território
conhecido, aquele
que abriga meus
sentimentos, pensamentos
e vivências.
As cartas que escrevi
para esse livro foram
minha primeira tentativa
de dar um novo
passo, de me colocar
no lugar de um
ser humano distante
da minha realidade.
Porém, quando o escritor
realiza seu ofício,
solitariamente,
ainda é sua voz interna
que escuta. No
momento que essa
voz sai da sua mente
e torna-se audível na
boca de outra pessoa,
e essa outra pessoa
é um homem, o
texto se universaliza e a magia da criação se confirma.
Muitos autores já experimentaram essa sensação que, para
mim, foi inédita, por isso meu entusiasmo e agradecimento à trupe
do “Também queria te dizer”. Mais do que nunca, seguirei em
busca dessa completude que só nos enriquece, tanto na arte
quanto na vida.
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