domingo, 20 de janeiro de 2013

Minha voz masculina - Martha Medeiros

O globo - 20/01/2013


“Um dos prazeres de se escrever (e, imagino, de atuar,
compor, pintar) é ampliar a própria existência, encontrar
novos canais de comunicação consigo e com o mundo”



Desde que comecei a escrever, e lá se vão mais de 25 anos, sempre 
fui reconhecida como uma voz legitimamente feminina. Não raro 
me chamavam, com exagero, de porta-voz das mulheres. Ora, 
não sou porta-voz nem de mim mesma. As mulheres são distintas 
entre si, nossas porta-vozes precisam ser múltiplas — e são. E os 
homens também se identificam com o que escrevo, o que é ótimo, 
pois demonstra 
que temos as mesmas 
inquietações e retira do 
meu trabalho o tom 
cor-de-rosa que me enjoa. 
Na verdade, o que 
reconheço em mim é 
uma voz unissex.


No entanto, sou mulher, 
com existência sexual, 
maternal e comportamental 
feminina, 
e isso vaza para o que 
escrevo. De mim saiu a 
Mercedes, do “Divã”, e 
a Beatriz que Cissa 
Guimarães levou aos 
palcos na peça “Doidas 
e santas”. O único livro 
em que criei personagens 
masculinos mais 
delineados foi “Tudo 
que eu queria te dizer”, 
que contém 35 cartas 
que narram situaçõeslimite 
vividas por homens 
e mulheres — e 
as cartas assinadas pelas 
mulheres também 
ganharam adaptação 
teatral num lindo monólogo 
com Ana Beatriz 
Nogueira.


Ou seja, sempre que 
minhas palavras subiram 
ao palco, era a minha voz feminina que entrava em ação, reforçando 
a imagem de ser uma autora “só para garotas”.


Pois finalmente vivi uma experiência que ratificou que posso ir 
além dessa zona de conforto. As cartas masculinas do livro também 
foram para o teatro: estão em cartaz no Rio na peça “Também 
queria te dizer”, com Emilio Orciollo Netto, a que assisti semana 
passada. Saí do Centro Cultural Midrash emocionada: foi 
gratificante comprovar que os textos daqueles personagens masculinos 
poderiam realmente ter sido escritos por um homem. 
Emilio, dirigido por Victor Garcia Peralta, deu a virilidade justa a 
cada um dos seis papéis que interpreta, e ajudou a reforçar meus 
argumentos quando me perguntam se a literatura feita por mulheres 
é diferente da feita por homens: não necessariamente. Não
quando se consegue imergir numa aventura fictícia e emergir dela 
sem deixar rastros do gênero a que se pertence.


Um dos prazeres 
de se escrever (e, 
imagino, de atuar, 
compor, pintar) é 
ampliar a própria 
existência, encontrar 
novos canais de comunicação 
consigo e 
com o mundo. Meu 
exercício literário 
sempre orbitou em

torno de um território 
conhecido, aquele 
que abriga meus 
sentimentos, pensamentos 
e vivências.

As cartas que escrevi 
para esse livro foram 
minha primeira tentativa 
de dar um novo 
passo, de me colocar 
no lugar de um 
ser humano distante 
da minha realidade. 
Porém, quando o escritor 
realiza seu ofício, 
solitariamente, 
ainda é sua voz interna 
que escuta. No 
momento que essa 
voz sai da sua mente 
e torna-se audível na 
boca de outra pessoa, 
e essa outra pessoa 
é um homem, o 
texto se universaliza e a magia da criação se confirma.


Muitos autores já experimentaram essa sensação que, para 
mim, foi inédita, por isso meu entusiasmo e agradecimento à trupe 
do “Também queria te dizer”. Mais do que nunca, seguirei em

busca dessa completude que só nos enriquece, tanto na arte 
quanto na vida.

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