domingo, 20 de janeiro de 2013

O nascimento de uma nação ["Lincoln"]

FOLHA DE SÃO PAULO

Indicado a 12 Oscar, "Lincoln", de Steven Spielberg, foi de alvo da obsessão do cineasta a uma produção épica
RODRIGO SALEMDE SÃO PAULOA sombra de Abraham Lincoln (1809-1865) persegue Steven Spielberg desde que o cineasta era criança.
Quando tinha cinco anos, ele foi levado por um tio para conhecer o memorial ao presidente, em Washington D.C.. Assustou-se com a famosa estátua branca de nove metros que reproduz Lincoln.
A cena não saiu da cabeça do garoto que cresceu em Nova Jersey e se tornou um dos mais importantes diretores americanos.
Aos 66, Spielberg agora coloca um ponto final em uma obsessão que se acentuou em 1999, quando o cineasta encontrou a escritora Doris Kearns Goodwin.
O diretor perguntou para a autora qual seria o tema do seu próximo livro e, ao saber da possibilidade de ser um épico político sobre Lincoln, ele comprou os direitos de filmagem, seis anos antes de Kearns lançar "Team of Rivals".
Nesse intervalo, Spielberg chamou John Logan ("Gladiador") para escrever o roteiro e Daniel Day-Lewis para ser o protagonista. O ator declinou e Liam Neeson foi chamado em seu lugar.
Após o encontro de Kathleen Kennedy, produtora do filme, com o escritor Tony Kushner ("Angels in America"), o projeto tomou outro rumo.
Kushner roteirizou "Munique" (2005) e começou a dissecar "Team of Rivals", que acabara de ser lançado. "Achava que era um projeto impossível", disse.
O roteirista decidiu focar na luta de Lincoln para encerrar a Guerra Civil que dividiu os Estados Unidos entre 1861 e 1865, e aprovar a 13ª emenda constitucional, acabaria com a escravidão no país.
"Queria mostrar Lincoln na conquista de algo monumental: abolir a escravatura e terminar a Guerra Civil", explicou Spielberg, que conseguiu convencer Day-Lewis a assumir o papel com a desistência de Neeson, em 2010.
"O que me interessou foi ler o que Lincoln escreveu, dos discursos às divagações. Sua escrita era impressionante", exaltou o ator à Folha.
A atriz Sally Field caiu como uma luva no processo conhecido de imersão do colega. "Nós não atuamos, mas nos hipnotizamos para viver as personagens", disse a atriz que faz Mary Todd, mulher de Lincoln.
MUDANÇAS NO FILME
Ambos foram lembrados pelo Oscar por suas interpretações e "Lincoln" recebeu 12 indicações, inclusive de melhor filme, direção e roteiro.
É a equação perfeita. Além da qualidade técnica do longa, o espírito de reconstrução do pós-Guerra Civil reflete a esperança dos americanos na reeleição de Barack Obama.
Obama, inclusive, que Spielberg ajudou a eleger -o cineasta arrecadou fundos em 2008 e dirigiu filmes de campanha para o democrata.
A natureza política do filme gerou um problema. Temendo um fracasso no mercado internacional, os produtores mudaram a abertura do longa fora dos EUA.
No Brasil, a cópia que estreia sexta-feira não abre com cenas violentas da Guerra, mas com um letreiro de explicação sobre a situação do país em 1865.

    Edição nacional de biografia exclui história central do filme
    RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHAA capa da biografia "Lincoln", de Doris Kearns Goodwin, que a Record lança na sexta, segue o padrão "livro do filme". Nela aparece não o ex-presidente dos EUA, e sim o ator Daniel Day-Lewis, tal qual no cartaz do longa. Abaixo, o aviso: "Livro que baseou o filme de Steven Spielberg".
    Mas o leitor não encontrará na edição quase nada do que é retratado na tela.
    Após adquirir os direitos de "Team of Rivals", da historiadora americana, que saiu nos EUA em 2005 com 944 páginas, a Record optou por uma versão resumida de 320 páginas, traduzidas por Waldéa Barcellos. A versão foi feita pela autora, diz a editora.
    Nela, estão retratados a disputa de Lincoln para se tornar o candidato republicano à presidência dos EUA, a maneira engenhosa como depois organiza antigos rivais em seu gabinete, e, em detalhes, seu esforço para encerrar a Guerra Civil Americana.
    Acontece que Spielberg também optou por um recorte. Justamente um localizado nos dois terços excluídos da edição nacional: a luta de Lincoln para aprovar a 13ª emenda constitucional, que acabaria com a escravidão nos EUA.
    A Record, alertada pela Folha de que sua edição não inclui a trama central do filme, informa ter avaliado que "o leitor brasileiro não teria interesse em uma biografia tão extensa sobre um ex-presidente de outro país" e que, de todo modo, "o livro ajuda a contextualizar a história".

      ANÁLISE
      Spielberg tira fantasma de Lincoln do mármore
      Diretor aborda com cautela mitologia de presidente que precipitou a Guerra Civil e aboliu a escravidão nos EUA
      A vitória do norte foi mais um capítulo na ascensão imperial de um capitalismo sem freios garantido pela maior máquina militar da história
      OTAVIO FRIAS FILHODIRETOR DE REDAÇÃOAbraham Lincoln se elegeu presidente dos Estados Unidos em 1860 no auge do impasse entre o Norte capitalista e o Sul escravocrata. A questão era definir se o trabalho escravo seria permitido nos imensos territórios do Meio-Oeste, que logo se tornariam novos Estados.
      Apesar de abolicionista, Lincoln foi eleito graças a uma plataforma moderada. Pretendia manter a escravidão no Sul, onde ela sustentava a economia local (fumo, algodão e açúcar), e vedá-la nos novos Estados. Essa proibição localizada, no entanto, foi vista pelo Sul como quebra inaceitável da autonomia estadual. A vitória de Lincoln deflagrou a secessão.
      Entre a eleição e a posse, sete (logo seriam 11) dos então 33 Estados se desligaram da União. Embora houvesse, nos escritos dos fundadores da República, referências ao caráter indissolúvel da União, a Constituição silenciava a este respeito.
      A rigor, o Sul exercia direito comparável ao reclamado pelas 13 Colônias quando, na solene Declaração de 1776, anunciaram seu desligamento da Coroa inglesa para criar os Estados Unidos.
      Lincoln tomou a mais controvertida e crucial das decisões, impedir a secessão pela força, o que precipitou a Guerra Civil (1861-65) e acarretaria a abolição no país inteiro.
      A população do Norte era o dobro da do Sul e sua capacidade industrial várias vezes maior -a vitória parecia questão de (pouco) tempo.
      Enquanto Lincoln era enredado por generais hesitantes, porém, o Sul mostrou uma disposição aguerrida capaz de manter seu exército na dianteira em toda a primeira metade de guerra, que se arrastou por cinco anos. Numa nação de 31 milhões (4 milhões de cativos), morreram 600 mil soldados, o dobro das perdas americanas na Segunda Guerra Mundial.
      Em 1863, quando a maré da guerra começava a virar, Lincoln emitiu uma proclamação que libertava escravos nos Estados sublevados, outra decisão de legalidade duvidosa, adotada a pretexto de "necessidade militar", já que os cativos eram usados pela logística do exército sulista.
      Em 1865, depois de reeleito por ampla maioria e às vésperas da rendição do Sul devastado, Lincoln aprovou na Câmara a 13ª Emenda à Constituição, que abolia a escravidão em definitivo.
      Tomada em retrospectiva, a história tem um apelo épico inigualável -o "self-made man" predestinado a ser presidente e vencer uma guerra em que o bem e o mal surgem claramente definidos, a fim de extirpar a infâmia da escravatura e estender a mão, vitorioso, aos derrotados.
      AURA MITOLÓGICA
      Com o desfecho do assassinato, em que o próprio presidente era oferecido como arremate do imenso holocausto, a figura de Lincoln foi alçada à máxima santidade, envolta numa densa aura mitológica composta por sedimentos crescentes de histórias, biografias, currículos escolares, poemas, canções, peças teatrais, filmes etc.
      O êxito moral da emancipação soterrou as complexidades do drama.
      Havia propostas de emancipação gradual; teria sido evitável a guerra? Sem ela, parece plausível que mais cedo ou mais tarde o Sul se reintegrasse à União. Além da questão principal, o Sul alegava as tarifas protecionistas do Norte, que exauriam sua economia ao obrigá-lo a comprar caro, como causa da separação.
      Sua derrota arrasadora fomentou o ressentimento racial que seria a sina do país.
      E, sob certo ângulo, a vitória do Norte foi mais um capítulo, como escreveu o crítico Edmund Wilson ("Patriotic Gore", Sangueira Patriótica, 1962), na ascensão imperial, guerra após guerra, de um capitalismo sem freios garantido pela maior máquina militar da História.
      Mas a personalidade de Lincoln -mais do que a determinação e a habilidade do estadista, seus gestos de simpatia magnânima, a singeleza filosófica de suas anedotas, a qualidade literária de seus discursos, o senso de humor nos piores momentos- dissolve todo questionamento e revitaliza o mito a cada geração.
      "KITSCH"
      Em "Lincoln" (2012), Steven Spielberg parece abordar esse imponente monumento simbólico com cautela. De tão trafegado, o mito também se desgastou -ou foi recoberto por uma pátina "kitsch" de cafonice americana que o cineasta procura afastar como pode. Essa preocupação é glosada nas cenas iniciais, quando Lincoln só aparece de costas, como Cristo nos filmes antigos.
      Dois dos criadores do cinema americano fizeram filmes sobre o personagem, com resultados desiguais. O de D.W. Griffith ("Abraham Lincoln", 1930) é uma galeria patriótica de cenas célebres; o resultado hoje parece tosco e previsível demais. Nada ilustra melhor o gigantesco salto narrativo e técnico do cinema americano do que compará-lo ao filme de John Ford ("A Mocidade de Lincoln", 1939).
      Este focaliza um episódio da juventude, em que o então advogado interiorano evita o linchamento de um cliente e prova em juízo sua inocência num assassinato. Henry Fonda instila flexibilidade e leveza em seu Lincoln ainda matuto, mas já clarividente. Presos ao mármore do mito, os dois filmes terminam com grandiloquentes tomadas do monumento ao presidente-mártir em Washington.
      Exceto pela música algo lamentosa, sobrou pouco daquela pátina endurecida no filme de Spielberg, e nada das peripécias de tantos de seus filmes anteriores.
      Aqui predomina um diálogo vivo e espesso; quase toda a cena acontece em sombrios ambientes domésticos com os personagens envoltos por cobertores e fumaça na umidade gélida de Washington, a câmera tirando um elegante efeito claro-escuro do contraste com a luz (emancipatória?) das vidraças.
      O roteiro, do dramaturgo Tony Kushner, foi baseado em mais uma torrencial biografia política de Lincoln, "Team of Rivals" ("Time de Rivais", 2005, de Doris Kearns Goodwin). O filme se concentra na aprovação da 13ª Emenda, episódio decisivo, mas que ocupa poucas páginas no final do livro.
      Fragmentos de seu imenso teor narrativo foram introduzidos com destreza ao longo da película, que gira em torno do dilema -aguçado para efeitos dramáticos- entre apressar o fim da guerra ou o da escravidão.
      Não é um filme memorável nem espetacular, mas persuasivo em sua sóbria seriedade. Maquiado como um cadáver, Daniel Day-Lewis compõe um símile fantasmagórico, quase embalsamado, mas seu Lincoln exala ao mesmo tempo uma familiaridade, acentuada pela dissonância do timbre agudo da voz, que evoca e supera o ancestral encarnado por Henry Fonda.

        Para entender "Lincoln"
        Filme foca os últimos meses da Guerra Civil americana e a campanha pela abolição da escravatura
        Com a iminente derrota dos Estados Confederados, Lincoln começa a campanha para aprovar a 13ª emenda constitucional, que aboliria a escravidão de vez no país. O presidente sabia que o fim das lutas estava próximo e que os democratas, altamente escravocratas, não passariam a emenda em tempos de paz. Com maioria na câmara dos deputados, ele conseguiu a aprovação em 31 de janeiro de 1865

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