O Globo - 20/01/2013
Assim como José Dirceu e outros
mensaleiros condenados
pelo Supremo Tribunal
Federal, o americano Lance
Armstrong, maior ciclista de todos os
tempos movido a doping, também
tem sua empedernida legião de fiéis.
Essa tropa de choque renitente é movida
a saudosismo, lealdade, manipulação
e, sobretudo, interesses. Sempre
que provas ou indícios, denúncias
ou acusações adquirem volume avassalador
ou irrefutável, ela encontra
refúgio na afirmação de que se trata
do linchamento público de um herói.
Ou, à falta de outro argumento, de
que “todo mundo faz a mesma coisa”.
A dimensão da idolatria ao atleta
nascido no Texas, mesmo fora da esfera
do esporte, explica a facilidade
com que essa tropa de fiéis sempre
desqualificou qualquer denúncia.
“Trata-se de uma caça às bruxas com
financiamento do governo”, era uma
das linhas de defesa mais frequentes
de sua equipe de advogados. “Passei
por mais de 500 testes antidoping e
nenhum jamais resultou positivo”, defendia-
se o próprio atleta, omitindo o
fato de que à época em que foi colhido
o material não existiam exames
capazes de detectar EPO ou doping
sanguíneo. Não fosse o congelamento
de seis amostras em 1999, retestadas
oito anos atrás, seus primeiros resultados
positivos teriam se perdido.
“Ele é muito forte, está bem para
quem teve a carreira e seu sustento
arrancados”, diz hoje outro de seus
advogados, atualizando o discurso
para a atual campanha de empatia
com um caído.
A própria doença de Armstrong solidificou
o seu status de herói nacional:
interrupção da carreira aos 25
anos por um câncer de testículos grau
4, quase letal, a história da superação
narrada em livro, a construção de
uma obra caritativa de grande visibilidade
e apelo popular, turbinada pelas
famosas pulseirinhas amarelas Livestrong
que arrecadaram US$ 26 milhões
só no primeiro ano de vendas.
Isso tudo, antes de seu retorno triunfal
às pistas. “Lance deixou de ser
apenas um ciclista”, declarou em 1977
seu agente Bill Stapleton. “Devido à
superação do câncer, a sua marca
agora adquire outra envergadura. Ele
está na iminência de fazer a transição
para outro patamar de celebridade.”
A partir daí, Lance Armstrong foi o
roteirista de sua meteórica carreira,
centrada, como declarou, no lema
“vencer a qualquer custo”. Em tom
monocórdio, esclareceu: “Decidi fazer
qualquer coisa para ganhar — e
isso é bom.” Para isso, engolia pílulas
a 50km da chegada, outras a 30km da
chegada, controlava o estoque de doping
da equipe, ensinava como tomar
EPO (apelidou-a de “Edgar Poe”) a
cada 3 ou 4 dias, embarcava em jato
privado para a retirada de 500cc de
sangue e camuflava eventuais hematomas
usando camisas de manga
comprida, denunciavam ex-colegas.
Seu apartamento em Gerone, na Espanha,
tornou-se o quartel-general
da operação.
Na entrevista em duas partes concedida
esta semana à apresentadora
Oprah Winfrey, Armstrong correu o
risco calculado de romper com seus
súditos mais leais. Admitiu ter recorrido
a doping durante 13 anos, dos
primórdios de sua carreira até chegar
ao apogeu, em 2005, como o “Homem
de Aço”.
Fez sua confissão pública no mesmo
tom impessoal e controlado com
que mentiu por tantos anos. Tampouco
mudou o olhar gélido com que
brindava seus adversários depois de
vencer uma prova.
Na entrevista, manteve-se blindado:
confessou mas não explicou, reconheceu
“falha de caráter” mas não
pediu desculpas por ter perseguido,
ameaçado e questionado a honra de
colegas. Teve a chance de esclarecer
os cantos mais sombrios do porão do
esporte, mas não quis acelerar o roteiro
para sua eventual reabilitação.
O uso generalizado de testosterona,
cortisona, hormônio de crescimento,
autotransfusão de sangue e EPO (o
hormônio sintético que aumenta a
produção de glóbulos vermelhos) por
Armstrong e sua equipe, embora conhecido,
jamais fora admitido. Um
mapeamento minucioso feito pela
Agência Antidoping dos Estados Unidos
(Usada) ao longo de dois anos resultara
num relatório de mais de mil
páginas, divulgado três meses atrás. E
este, por sua vez, acarretou a perda de
todos os títulos mundiais conquistados
pelo atleta e seu banimento da
prática de qualquer esporte olímpico
para o resto da vida.
Mas a Usada e o governo americano,
que mantém aberta uma investigação
federal paralela, querem ir
mais fundo. E para isso uma colaboração
de Armstrong, apelidado de
“Bernie Madoff do esporte” por ter
conseguido manter a fraude tanto
tempo, seria crucial. A velocista Marion
Jones, estrelíssima dos Jogos de
Atlanta, em 2000, com cinco medalhas
olímpicas no pescoço, também
passou anos negando seu envolvimento
em outro vasto esquema de
doping. Acabou por fazer confissão
chorosa, cumpriu pena de seis meses
por perjúrio e jamais retornou às pistas.
No caso de Armstrong, contudo, a
acusação é bem maior: a de ter liderado
o programa de doping mais sofisticado,
profissional e exitoso da história
do esporte.
A intenção da Usada é conseguir
montar uma Comissão da Verdade e
de Reconciliação capaz de pegar todos
os tentáculos do programa de doping
— a começar pelo papel da própria
União Internacional de Ciclismo,
dos grandes patrocinadores e das
equipes. A U. S. Postal de Armstrong,
por exemplo, investiu US$ 32,2 milhões
na equipe entre 2004 e 2011 e
faturou mais de US$ 103 milhões em
marketing — 320% de retorno, portanto.
Caberá, então, a pergunta se a Nike,
a Oakley ou a Anheuser-Bush de nada
sabiam ou nada suspeitavam contra
seu atleta de ouro. Alguma vez quiseram
saber? “Sempre que um ciclista é
flagrado, o sistema se proclama chocado
e se declara completamente
contrário à prática do doping. Tacha o
culpado de ovelha negra e tudo continua
igual”, constata o alemão Jörg
Jaksche, já aposentado.
Talvez nem tudo. Para os crédulos
inveterados, a vitória do britânico
Bradley Wiggins no Tour de France
2012, seguida de sua conquista do ouro
nos Jogos de Londres, é um alento.
Wiggins demonstrou que é possível
vencer fazendo apenas o que deve:
pedalar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário