domingo, 20 de janeiro de 2013

Uma visita ao samurai ferido [Nagisa Oshima]

FOLHA DE SÃO PAULO

aRQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Uma visita ao samurai ferido
Tóquio, 1995
AMIR LABAKINagisa Oshima já era um samurai ferido quando o encontrei em Tóquio, no fim de setembro de 1995. Aos 63 anos, ele ainda não sofrera a série de AVCs que decretaria precocemente o fim de sua carreira após o homoerótico "Tabu" (1999), mas já amargava havia quase uma década uma semiaposentadoria, sem emplacar a realização de um longa-metragem desde o francês "Max Mon Amour" (1986). Para os produtores japoneses, era "persona non grata" mesmo antes do escândalo nacional e planetário com "O Império dos Sentidos" (1976), feito com financiamento internacional.
Eu visitava Tóquio pela primeira vez, a convite da Fundação Japão, dentro de um grupo de personalidades do cinema brasileiro que fariam um tour de duas semanas, motivado por um duplo centenário: o do cinema e o do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Brasil e o Japão.
O primeiro dos dois encontros que teria com Oshima foi inesperado. Em meio às esculturas de gelo que zelavam pela mais assombrosa mesa de sushis e sashimis que eu jamais veria, na recepção de abertura do 8º Festival Internacional de Cinema de Tóquio, surgiu uma figura trajando um vistoso quimono. Acompanhado de uma assistente, Oshima se destacava ainda mais pelo contraste com o figurino dos demais convidados: aquele que se autodefinira como "muito antijaponês" era o único vestido à moda oriental no salão.
Parte do grupo o reconheceu, e nos aproximamos para que, seguindo a tradição, fossem feitas as apresentações formais. Não quis perder a oportunidade, mesmo sabendo que quebraria a agenda fixada para a viagem, e perguntei se poderia entrevistá-lo ainda durante minha breve estadia em Tóquio. Ele respondeu que talvez fosse possível e, após confabular com a assistente e com Jo Takahashi, coordenador cultural da Fundação Japão no Brasil e responsável por ciceronear nosso grupo, foi marcado um encontro para dois dias mais tarde em sua produtora.
Sem falar uma palavra em japonês, empunhando firmemente o cartão de visitas que recebera durante as apresentações, tomei um táxi do hotel até o endereço da Oshima Productions Ltd. No centro do diminuto escritório encontrei o cineasta, sorridente, de chinelos como se usa no Japão, mas com impecáveis terno e gravata.
A memória já me trai, e não lembro se a entrevista de cerca de uma hora e meia foi conduzida em inglês ou mediada pela assistente -infelizmente, não consegui localizar as fitas cassete com o registro do encontro. Mas lembro que me chamou a atenção a forma serena com que falou mesmo das adversidades o eterno "enfant terrible" do cinema japonês, um dos mais radicais líderes da ultrapolitizada e sensual "nuberu bagu", a "nouvelle vague" japonesa.
O texto publicado na Folha de 30 de setembro daquele ano atesta: Nagisa Oshima não acreditava que houvesse, já àquela altura, algo chamado "cinema japonês".
Já preparando aquela que seria, no ano seguinte, a primeira edição do É Tudo Verdade, não pude deixar de perguntar sobre sua intensa atividade como documentarista. O cineasta frisou que sempre se interessara muito por documentários e afirmou não ver "diferenças essenciais" entre ficção e cinema documental. Disse que gostava de passar de um registro para o outro e que o que sempre quisera fora "fazer filmes muito subjetivos."
A informação que não saiu no jornal naquela ocasião surgiu na conversa quando ela já chegava ao fim: perto da despedida, Oshima me confidenciou ter esboçado um projeto ficcional sobre a imigração japonesa na Amazônia para a lavoura de pimenta-do-reino e juta, entre o final dos anos 1920 e o começo dos anos 1930.
Era um projeto subjetivo: ele visitara a região quando viera ao Brasil por ocasião de uma retrospectiva de seus filmes no Masp, em 1984, ao lado de sua mulher, a atriz Akiko Koyama, que ainda tinha familiares na Amazônia. Um dia, disse-me sorrindo, pretendiam voltar.
Infelizmente nada disso se concretizou. O projeto que então escrevia -o visceral "Tabu"- marcaria sua despedida das telas e, na última terça, aos 80, o samurai deixou as armas para sempre.

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