Numa Alemanha em crise, português vira o idioma da moda em encontro internacional de tradutores
NINA SAROLDI
Que a Europa está em crise, todos sabemos.
Que a poderosa Alemanha também
está sendo afetada, sabemos de modo
menos ostensivo, até porque as formas sob as
quais esta crise pode ser percebida não alcançaram
o caráter espetacular das manifestações
ocorridas na Grécia e na Espanha. No entanto,
para alguém que frequenta o país com regularidade
desde meados dos anos 90, alguns sinais
começam a saltar aos olhos.
O que me chamou a atenção em minha última
visita foi o fato de o interesse por nosso país,
apesar de os alemães estarem enfrentando problemas
inéditos, não parar de crescer. Escapamos
à redução da tríade carnaval, samba e futebol?
Em 2008, senti-me ofendida em meus brios
nacionalistas quando um escritor húngaro,
residente em Berlim, perguntou se eu conhecia
Tom Zé, “um músico de vanguarda brasileiro,
se é que existe vanguarda no Brasil”, um país
que o chocara pela desigualdade social e pela
violência, completou na mesma levada, ignorando
meu olhar indignado.
No início de 2013 voltei à Alemanha, ao Colégio
Europeu de Tradutores em Straelen, um
verdadeiro playground de intelectuais com sua
biblioteca de 110 mil volumes, dos quais se destacam
dicionários e léxicos em todas as línguas
imagináveis, que vão desde a nomenclatura das
ostras mais raras do sul do Pacífico às armas
usadas desde o princípio dos tempos. Cada
quarto é, literalmente, uma sessão da biblioteca
e o ambiente consegue ser ao mesmo tempo
monástico e cosmopolita. À noite, os hóspedes
se reúnem na cozinha comunitária para comer,
beber e conversar. Foi lá que conheci gente de
vários cantos do planeta na companhia de Marcelo
Backes, hóspede frequente do local.
PUJANÇA ECONÔMICA BRASILEIRA EM PAUTA
Desta vez, logo na chegada percebi os pequenos
sinais da crise: lojas fechadas no minúsculo
centro comercial da cidade; nos jornais, artigos
sobre o que os alemães chamam de “risco de
pobreza” e a crescente desigualdade entre as
classes. Descobrimos que um alemão, tradutor
residente quando lá chegamos, morava em um
dos quartos e não na grande e confortável casa
que ainda existia em 2010, reservada à representação
diplomática do Colégio, alguns passos
adiante na mesma rua. No regime de corte de
gastos, uma das medidas foi entregar a casa
alugada. Na cozinha não há mais vinho para os
tradutores, como antes. A namorada do tradutor
residente, também tradutora, contou que
no momento trabalhava meio período em uma
pequena livraria de Berlim, onde mora, para
equilibrar as contas. Segundo ela, 2012 foi um
ano muito fraco no mercado editorial e, para
piorar, o dono da livraria já a havia advertido —
por conta do baixo movimento na loja — que
não sabia se poderia mantê-la
em 2013. Dava para notar no jeito
dela uma insegurança que,
para brasileiros pobres ou de
classe média, sobretudo quando
autônomos, é uma velha conhecida,
mas que para ela era
visivelmente nova.
Foi neste contexto de crise —
instalada ou temida — que, pela
primeira vez, segundo o próprio
staff da casa, a língua dominante
no Colégio Europeu de Tradutores foi o português.
Em raras ocasiões escutávamos ou falávamos
nossa língua no Colégio. Até mesmo
quando encontramos o tradutor Sergio Tellaroli,
em 2010, falamos alemão para facilitar o contato
com os poloneses, búlgaros
e holandeses que nos rodeavam,
já curiosos com as notícias que
chegavam acerca da pujança
econômica do Brasil. Além de
mim, desta vez em missão de
pesquisa acadêmica, e de Marcelo
Backes, que passou a temporada
escrevendo seu novo romance,
havia outros falantes do
vernáculo: Markus Sahr, tradutor
do português “europeu” para
o alemão, como ele disse mui respeitosamente
ao se apresentar na chegada, embora por conta
da Copa do Mundo esteja também traduzindo
autores daqui; e Nicolai von Schweder-Schreiner,
tradutor do português “brasileiro” para o
alemão, responsável pela tradução do romance
“Cidade de Deus”, de Paulo Lins.
Vivemos então a situação inédita, Marcelo e
eu, de falarmos nosso idioma correndo o risco
de sermos entendidos pelos outros e ainda, ao
invés de pedir ajuda em alguma dificuldade da
língua alemã, oferecer ajuda aos alemães na
hora de lidar com o português. Nicolai, por
exemplo, veio me perguntar o significado de
“bagaço de bergamota”, em “Barba ensopada
de sangue”, de Daniel Galera, que mal saiu no
Brasil e já o ocupava. Se bergamota é uma palavra
quase desconhecida no Rio de Janeiro, seria
pedir demais ao tradutor que ele conhecesse
a versão gaúcha da carioca tangerina. Uma
noite, estávamos todos reunidos na sala de TV
assistindo ao filme francês “Uma relação pornográfica”,
dublado em alemão. Lá pelas tantas
ouvi uma expressão nova, “Missionarstellung”,
algo como “a posição do missionário”. Perguntei
discretamente ao Marcelo o que era aquilo e
ele me respondeu: “papai e mamãe”. Na mesma
hora o grego Theo, achando a expressão
engraçada, repetiu alto “papai e mamãe”. Nicolai
então bateu com a mão na testa e exclamou
“então isso é brincar de papai e mamãe!” Têm
certa razão os que dizem que só se conhece
uma língua de verdade na cama!
ALÉM DE PAULO COELHO E JORGE AMADO
Para além dos onipresentes Paulo Coelho e Jorge
Amado, jovens escritores brasileiros começam
a ser traduzidos na Alemanha e a receber
convites para os eventos literários do país, o
que acontecerá com muito mais intensidade
por conta da próxima Feira do Livro de Frankfurt,
em outubro, que tem o Brasil como país
homenageado. Parece que a vivência de problemas
similares aos brasileiros tais como a
desigualdade social, a corrupção e a ineficiência
— o atraso na construção do aeroporto de
Berlim, por exemplo, tornou-se um escândalo
nacional — começa a tornar os alemães mais
sensíveis aos aspectos não folclóricos de nossa
cultura. Soma-se a isso, é claro, a curiosidade a
respeito da receita de crescimento econômico
e à presença do Brasil na mídia internacional, a
reboque dos grandes eventos que o país vai sediar.
Por último, e não menos importante, as
políticas de incentivo à tradução da Biblioteca
Nacional e o trabalho de agentes e editores, cada
vez mais ativos na divulgação da literatura
brasileira, fazem com que possamos perceber
claramente a abertura dos caminhos para as
boas histórias que temos a contar.
Nina Saroldi é professora adjunta da Escola de
Engenharia de Produção da UNIRIO e autora do
livro “O mal-estar na civilização — As obrigações
do desejo na era da globalização” (Civilização
Brasileira)
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