domingo, 3 de março de 2013

Após chegada da UPP à Rocinha, bailes e salões de beleza dão lugar a curso de ioga - Monica Bergamo

folha de são paulo

A cabeleireira Cleide Oliveira, 45, vai ser forçada a mudar de ramo. Desde que a favela da Rocinha, na zona sul do Rio, recebeu a Unidade de Polícia Pacificadora, em novembro de 2011, ela viu a clientela minguar. E decreta em entrevista à repórter Eliane Trindade: "A UPP acabou com a chapinha".
"Não tem mais tanto baile, ninguém se arruma como antes", reclama Cleide, no salão vazio, em pleno sábado. Já passava das 17h e nenhuma cliente pagara R$ 20 por uma escova ou R$ 100 por uma progressiva. Dispensou quatro auxiliares. Nos velhos tempos, secadores e pranchas alisavam cabelos sem parar. "Até meia-noite."

Comércio na Rocinha sofre com a pacificação da favela

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Leticia Moreira/Folhapress
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Fabiana Escobar, conhecida como Bibi Perigosa, e a filha Dalila, vestida com roupa da grife Danger Girl, que era de Bibi, na laje da casa delas na favela da Rocinha, no Rio
A crise bateu antes na porta ao lado, no número 419 da estrada da Gávea, principal rua da favela. Ali funcionava a Danger Girl, marca de roupas sob medida para ir até o chão no baile funk. "A Rocinha era uma festa. Tinha baile de segunda a segunda, de graça, com bebida liberada", diz Fabiana Escobar, conhecida como Bibi Perigosa, dona da grife falida.
"Com a ocupação, deu uma caída nessa coisa de baile e as meninas não têm dinheiro nem razão para se arrumar", reclama Bibi, ex-mulher do traficante Saulo de Sá Silva, antigo "Barão do Pó" da Rocinha.
Em janeiro, ela passou o ponto da Danger Girl. Vive de aluguéis de espaços comerciais na favela. Nessa nova fase de sua vida, Bibi criou um blog e ficou famosa. A ponto de ser citada por personagem da novela das nove, "Salve Jorge", de Gloria Perez.
Bibi é locadora de dois salões de beleza. O ramo em decadência na favela pacificada disputa espaço com igrejas e biroscas. No raio de 1 km, a reportagem contou 16 cabeleireiros, 14 bares e nove igrejas, entre elas a Assembleia de Deus - Ministério Visão de Águia, que funciona no prédio do profano salão de baile Varandão.
Ao subir o morro, a polícia fuzilou a economia movida a pó. "Cada traficante tinha dez mulheres e agradava a um monte de sogras e a cunhadas. Davam dinheiro pra toda essa mulherada e movimentavam os negócios", afirma uma comerciante da rua Ápia, onde se concentra o comércio "chique" local.
"Entrou em crise quem dependia do dinheiro que circulava em torno dos traficantes. Antes, os caras não podiam sair da Rocinha e consumiam aqui. Era tudo em dinheiro vivo, e muito", diz o taxista Manuel Vale, 48.
O choque de ordem foi um baque para os organizadores de festas. O tradicional baile funk da rua 1 foi fechado pela Defesa Civil porque o local não tinha saída de emergência. "Estou correndo atrás das exigências", diz o promoter Marcelo Tocão, que reunia 3.000 pessoas e hoje faz festas para no máximo 500.
Comandante da UPP, o major Edson Santos é o "síndico" da Rocinha, à frente de 700 homens responsáveis pela segurança no morro. "Cidadania é via de mão dupla. Os bailes acabaram por não estarem preparados para funcionar dentro das normas."
"Agora tem de ter regra", diz Allan Barroso, 21, organizador da festa Social dos Atores, no Varandão. Marinheiro de primeiro baile, ele fez peregrinação para liberar o espaço para 300 pessoas. Carrega um ofício --o "nada a opor 016/2013"-- com o Ok de Corpo de Bombeiros, PM, CET e administração da Rocinha.
A festa, há alguns dias, sobreviveu a dois apagões elétricos. "Bombava" quando a chuva alagou as ruas da favela e fez a sirene de alerta contra deslizamentos ser acionada das 4h às 6h da manhã.
"Acabou UPP", bradava, naquele momento, Verme, garoto de 14 anos, ao ver da varanda um carro de polícia. Sobrinho de um ex-chefão do tráfico, ele se mete em várias brigas até ser expulso por voltas das 3h.
"Antes da UPP isso aqui era Sodoma e Gomorra", compara Bibi, referindo-se às cidades que, segundo relatos bíblicos, foram destruídas por conta da imoralidade. A antiga "favela do pecado" não resistiu à lei do silêncio e às rondas policiais. "Acabou a festa, graças a Deus", diz a doméstica Zilda Almeida, 44, membro da Igreja Mundial do Reino de Deus.
Em outubro do ano passado, Bibi conta que chegou a ser levada para a delegacia por conta do som alto da festa do seu aniversário. "A intolerância da polícia é culpa também dos moradores, que agora ficam ligando pra eles por qualquer motivo."
Virou piada o chamado por conta da fumaça de um churrasco na laje. Quando a PM chegou, a churrasqueira nem sequer havia sido acesa.
Frei Dito, da Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, diz ser novidade a sensação de "não morar mais em um mundo sem lei". Para ele, a bandidagem deixou a mentalidade de "poder fazer o que quer na hora que quer".
Major Edson diz que as "viúvas do tráfico" estão se adaptando bem aos novos tempos. "Elas têm procurado levar a vida honestamente." Bibi, por exemplo, quer passar a limpo a vida de mulher de bandido. Foi flagrada em escuta da polícia se dizendo cansada de contar dinheiro. "Era R$ 700 mil por semana. Chegava em carregamentos."
Separada desde 2010, ela faz sucesso não só no blog mas também no Twitter. Já tem o rascunho de autobiografia em que narra a trajetória de garota classe média que se apaixonou por líder do tráfico. Visada no dia da ocupação do morro, ela se livrou de dois bichinhos de estimação: a cobra Samanta e um tucano. "Não ia dar mole e ser presa por manter em casa animais silvestres, né?"
A pacificação fez florescer negócios, como o hotel Boa Viagem, que funciona desde janeiro. Ocupa um dos quatro andares de um prédio de 106 apartamentos. Metade convertida em quartos com diárias de R$ 98.
Após oito meses de obras, o quarto andar do antigo cortiço está quase pronto para receber hóspedes. A reportagem da Folha foi a primeira a ocupar os apartamentos 418 e 420 --com ar-condicionado, microTV de tela plana, pia para lavar louça e banheiro.
O gerente Marco Antônio da Conceição, 26, conta que já não há mais vagas para a Jornada Mundial da Juventude, em julho. A primeira caravana de gringos chega neste mês. "Um grupo de 29 franceses confirmou reserva de uma semana. Eles querem viver a realidade da favela."
A farmácia na entrada do Boa Viagem fechou. Foi inaugurada na euforia pós-ocupação, quando se instalaram na favela redes de comércio popular e bancos. "Havia mais grana antes, mas acredito na UPP", diz o gerente do hotel.
Os valores de imóveis inflacionaram. Uma casa de dois quartos está à venda por R$ 50 mil. Com laje, R$ 120 mil. Aluguéis também dispararam: um quartinho custa R$ 450 por mês, o preço de uma casa antes da UPP.
Um mar de antenas parabólicas é outro símbolo da pacificação. "Antes era ao Deus dará, tudo clandestino", afirma Luciano Viana, dono da Evolution Internet, que passou a oferecer serviços de TV e internet regularizados. "Aumentou só a burocracia e a concorrência." Contabiliza cem assinantes que pagam R$ 58 de mensalidade, contra 700 antigamente na base do "gato net" a R$ 30 por mês.
Entram em cena as "Marias UPPs". "O negócio delas é o cara 'tá' fortemente armado. Antes viviam atrás dos traficantes", diz a dona de um sex shop -ramo que "já foi melhor, mas não tá tão mal". E sinal dos novos tempos na Rocinha: uma placa oferece sessões de ioga na laje.
Mônica Bergamo
Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.

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