Bruna Sensêve
Estado de Minas: 03/03/2013
Ainda em 1957, o psicanalista húngaro Michael Balint atestou: o médico é o melhor remédio. Mais de 50 anos depois, a tese de que a personalidade desse profissional de saúde exerce papel preponderante no trato com a doença, defendida no livro O médico, seu paciente e a doença, ganha pela primeira vez confirmação científica. Pesquisadores da Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, analisaram a atividade cerebral de médicos no momento em que eles acreditavam tratar pacientes e descobriram que, dentro de um consultório, ambos dividem o sofrimento da doença e o alívio do tratamento.
O experimento foi ousado, longo e criativo. No total, foram analisados 18 médicos com cerca de 10 anos de prática clínica em nove especialidades. Primeiro, foram identificadas pela aplicação de um dispositivo analgésico falso e por meio de exames de imagem as áreas do cérebro dos voluntários que correspondiam aos estímulos de dor e de alívio. Depois, cada médico foi apresentado a uma paciente, que fingia estar sentido dor, para uma consulta inicial com 20 minutos de duração, em um consultório comum. Em seguida, ambos foram levados à sala de ressonância magnética funcional. O escâner usado no experimento foi especialmente equipado com um controle remoto, que poderia tanto ativar o mesmo dispositivo analgésico falso ou, por meio de um segundo botão, não fornecer qualquer alívio.
Aleatoriamente, era pedido aos médicos que tratassem a dor ou que não ativassem o tratamento. Quando a última opção era escolhida, as pacientes exibiam uma expressão dolorosa. Da mesma forma, quando era pedido que ativassem o equipamento analgésico, elas demostravam alívio. Durante todo esse processo, as atividades cerebrais dos médicos foi monitorada. Ao fim da sessão, eles souberam que todo o procedimento era uma farsa, tiveram a oportunidade de retirar os dados, mas nenhum optou por isso.
Os resultados dos exames aplicados mostraram que os médicos dividem o alívio dos pacientes quando os tratam e, ao mesmo tempo, se compadecem da dor ao imaginar como os pacientes se sentem. No artigo publicado na revista Molecular Psychiatry, do grupo Nature, os cientistas relataram que as regiões ativadas quando os participantes acreditaram administrar um tratamento efetivo nas atrizes são as mesmas conhecidas por se manifestar em pacientes que receberam um tratamento com placebo. O córtex pré-frontal ventrolateral direito e o córtex cingulado anterior rostral estão associados com o alívio da dor e o sentimento de recompensa, respectivamente. Eles se manifestam em pacientes que experimentaram o efeito placebo depois de uma melhora da situação sob um tratamento sem substâncias ativas.
Segundo o autor sênior do estudo e professor associado de medicina de Harvard Ted Kaptchuk, essa é a primeira vez que foi demonstrado que cuidar de pacientes engloba uma neurobiologia única em médicos. Ele acredita que a pesquisa é um primeiro e importante passo no processo de investigar como as interações entre paciente e médico podem interferir nos resultados clínicos. “Nossos resultados fornecem evidências iniciais da importância da interação de redes cerebrais entre pacientes e cuidadores ao mesmo tempo em que reconhece a relação médico-paciente como um componente valioso de cuidados de saúde, ao lado de medicamentos e procedimentos”, avalia.
Esse componente valioso a que se refere Kaptchuk muitas vezes acaba comprometido pelos avanços tecnológicos em diagnósticos e tratamentos, segundo o cardiologista Henrique Batista e Silva, secretário-geral do Conselho Federal de Medicina. “De certo modo, os médicos passaram a dar mais importância a esses achados e a essas aquisições. O que não invalida as conquistas da ciência, mas defendemos um fator chamado humanismo na relação médico-paciente.” O cardiologista fala sobre um tempo em que os resultados encontrados pela equipe de Harvard eram evidentes na clínica. “Tinha muito aquela situação que o paciente melhorava só de o médico chegar. Eles falavam: ‘Doutor, foi o senhor chegar que a dor desapareceu’. Na minha vida médica, vi muitos pacientes dizerem isso e me alegrava muito.”
Esse relacionamento pode atingir graus extremamente sensíveis. O presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, Anderson Silvestrini, convive diariamente com situações delicadas em que informações duras precisam ser passadas da melhor forma possível, o que exige, acima de tudo, humanidade. “A realidade precisa ser passada, mas não é preciso ser cruel”, resume Silvestrini. Ele confirma na prática os dados obtidos pela equipe de Harvard. “É lógico que, quando a gente trata um paciente e vemos melhora, isso causa uma sensação muito boa, uma satisfação para o médico, porque ele estuda a vida toda para aquilo, mas o médico também tem que estar preparado para o contrário.”
Para o professor de psiquiatria da Universidade de Brasília (UnB) Raphael Boechat, essa preparação deve acompanhar o médico desde o início de sua formação. Professor de duas universidades na capital federal, ele afirma que vê muitos alunos de medicina que não têm muita noção da carga emocional que envolve a profissão. “O médico acha que essa situação não tem qualquer reflexo na saúde dele, o que não é verdade. A chave é regredir uns 30 anos e voltar à medicina dos anos de 1960, 1970, quando havia um grande respeito de ambas as partes. Essa formação humanista deve estar no currículo obrigatório da faculdade de medicina”, defende.
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