De volta à avenida
O desfile é um acontecimento único no mundo, demonstração da criatividade do brasileiro
Isso não mudou, até piorou.
A impressão que tive, desta vez, foi que o som estava mais alto do que antes. Já temendo isso, levei algodão para tapar os ouvidos e o fiz, mas não adiantou muito. Devo, porém, admitir que, não os houvesse tapado, não teria ficado muito tempo ali.
Entendo que, dado o tamanho da passarela, com vastas e altas arquibancadas, os alto-falantes tornam-se necessários, uma vez que, sem eles, uma boa parte dos espectadores não seria tocado mais intensamente pelo espetáculo.
Isso pode, porém, ser resolvido sem ampliar o som de modo insuportável, com acontece agora. Bastaria erguer, naquelas arquibancadas, postes com alto-falantes. Desse modo, creio, teríamos um espetáculo menos estressante e mais fiel à natureza mesma do desfile que, no passado, não contava com esse sistema de som.
O resultado é que, naquela época, se ouvia os foliões cantando o samba, no momento mesmo em que passavam diante de nós. Hoje, não se ouve voz alguma, a não ser a do puxador do samba, num berreiro atordoante. Neste domingo, houve um momento em que o som dos alto-falantes falhou e foi uma maravilha: não durou dois minutos, mas foi o suficiente para ouvirmos a escola cantando e, num impulso, o público inteiro aplaudiu.
Mas nada tira o brilho desse espetáculo único no mundo, que é o desfile das escolas de samba. Falo de cadeira, porque comecei a assisti-lo em 1956, quando me enamorei da carioca Thereza Aragão. O desfile ainda era na avenida Presidente Vargas, depois passou para a Rio Branco e, finalmente, para a Marquês de Sapucaí, ainda com arquibancadas desmontáveis, de madeira.
A passarela atual -mal apelidada de sambódromo- foi invenção de Darcy Ribeiro, que convidou
Oscar Niemeyer para projetá-la. Nenhum dos dois nunca havia assistido a um desfile.
A praça da Apoteose foi imaginada por Darcy como o lugar onde o desfile de cada escola se encerraria como apoteótico espetáculo de dança. Disse a ele que isso jamais aconteceria e não aconteceu: a praça da Apoteose, apesar do nome pomposo, tornou-se o lugar de dispersão, como tinha que ser.
O que piorou muito, nestes últimos anos, foi a letra dos sambas-enredo. Isso já vinha ocorrendo e se acentuou a partir do momento em que os traficantes de drogas passaram a mandar nas escolas de samba e a impor seus comparsas como autores dos sambas. O principal sintoma disso foi o aumento do número de parceiros: de um ou dois compositores passaram a cinco, seis, sete.
Outro fator foi a necessidade de desfilar com tempo determinado, o que provocou a aceleração do ritmo, e o samba virou marcha. Este ano, à exceção talvez do samba da Vila Isabel, que teve Martinho da Vila como um de seus autores, os outros são péssimos.
As letras, além de banais, são desconexas, frases soltas, incongruentes, sem sentido algum. A melodia às vezes escapa, mas nada que se compare aos sambas-enredo do passado. Tanto que ninguém os decora nem os canta durante o desfile, como antigamente. O que salva o desfile hoje em dia são as baterias que, quando passam, empolgam o público e o fazem sambar.
De qualquer modo, o desfile das escolas de samba é um acontecimento único no mundo, demonstração da criatividade do povo brasileiro. Um espetáculo belo e empolgante, a que nenhum outro se compara, realizado a céu aberto com a participação apaixonada da plateia.
E há mais: a criatividade dos carnavalescos que inventam alegorias belíssimas, em que a inventividade plástica e cromática se soma muitas vezes à poesia e ao humor.
Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, nos anos 1960, revolucionaram as alegorias e as fantasias, abrindo caminho para as inovações de um Paulo Barros, que hoje encanta o público com suas invenções surpreendentes. Neste ano não deixou a desejar e, sim, pelo contrário, arrebatou a plateia com um extraordinário navio fantasma, que me pareceu alcançar o nível da melhor arte contemporânea.
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