Experiência coletiva
Um celular pode tocar, alguém pode tossir, um grito pode soar no meio da plateia e um ator pode morrer
ACONTECEU ALGUMAS vezes. Estou em cena, com o público na plateia, quando sou invadida pela sensação. "Que coisa engraçada a gente aqui, falando deste jeito, com este figurino... Eles ali, quietos. Que milagre ninguém romper com isso!" É como se, por instantes, eu tomasse consciência plena do aqui e agora do Teatro. É um pensamento perigoso, preciso me esforçar para voltar à concentração.
Mas foram nesses momentos que compreendi quase concretamente a coisa única que é o evento teatral.
Ouvi uma vez de um estudioso de nossa arte que o público continua indo ao teatro na grande esperança de ver um ator morrer em cena. Adoro essa ideia. Quer dizer, não creio que o público torça exatamente por isso, e Deus me livre algum dia eu mesma contribuir para a literalidade de tal máxima, mas amo pensar que o Teatro é algo que corre vivo num fio de navalha.
Temos tudo combinado, mas, a qualquer momento, tudo pode acontecer, até mesmo a morte, e é essa extrema atualidade e o perigo que fazem esse ritual ancestral ainda acontecer por aí.
Odeio quando toca um celular na plateia, coisa bastante frequente, aliás, mas confesso que também sinto um clandestino prazer.
De alguma maneira, o toque do celular e o burburinho subsequente nos une na consciência do que estamos vivendo naquele momento.
Pessoas que saíram de suas casas, escolheram o que vestir, muitas vezes compraram ingressos antecipadamente, combinaram com a amiga de pegá-la na porta do prédio, teceram uma rede de trivialidades humanas em torno das nove horas daquela noite, quando se encontraram numa sala escura para, juntas, ficar em silêncio ou rir, em onda sonora, conectadas ao campo dos sonhos, unidas em emoções e pensamentos semelhantes provocados por uma história contada por pessoas que correm o risco de não chegar ao fim do espetáculo. Não é incrível?
O teatro é mesmo uma rara experiência coletiva onde todos nós, atores, equipe e público agimos sob um pacto oculto. Sabemos o perigo que é. Um celular pode tocar, alguém pode tossir, um grito pode soar no meio da plateia e um ator pode morrer.
Na maioria das vezes, só ouvimos o celular e a tosse, graças a Deus, mas suspeito que Dionísio mantém uns telefones esquecidos nas bolsas de certas senhoras para que, nestes tempos tão virtuais, acordemos momentaneamente do sonho para perceber que estamos em pleno exercício do coletivo. Para lembrarmos da aventura e do prazer que é envolver-se neste ritual.
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