terça-feira, 19 de março de 2013

Invasão do Iraque - 10 anos - Sergio Dávilla

folha de são paulo

Moradores de Bagdá relembram guerra que faz 10 anos hoje
Sobreviventes de ataques dos EUA e de massacre atribuído a Saddam Hussein relatam à Folha como é sua vida hoje
Em dez anos de invasão, morreram até 120 mil civis iraquianos, e os EUA gastaram um PIB brasileiro no conflito
SÉRGIO DÁVILAENVIADO ESPECIAL A BAGDÁHá dez anos, num fim de tarde de março de 2003, o bairro de Al Shola, um reduto xiita pobre na periferia de Bagdá, ouviu um barulho como nunca antes, seguido de gritos, choros, latidos e alarmes de (poucos) carros.
Um artefato explosivo atingira o mercado central do bairro, no que foi o maior massacre civil do início da Guerra do Iraque, que hoje completa dez anos. Ao menos 58 pessoas morreram e 49 ficaram feridas. Restos humanos se espalharam pelas calçadas do comércio, formando caminhos de sangue seguidos pelos olhares de curiosos, adultos e crianças.
Um deles era Fuad Ramadan, então com 25 anos. Já com os cabelos ralos, ele aparece no canto de foto feita pela Folha na ocasião. Após uma busca de alguns dias que envolveu um tenente da polícia bagdali e dezenas de moradores, o comerciante foi localizado pelo jornal ontem.
Mais calvo, hoje vende bolinhos de falafel não muito longe de onde houve a explosão. Casado, tem um filho nascido três anos depois do massacre e se lembra bem do dia.
"Eu vendia kebabs quando ouvi o barulho", diz. "Corri ao local e fiquei aliviado ao saber que nenhum parente e amigo tinha morrido", continua, "mas revoltado ao ouvir que o artefato era de fabricação iraquiana". A tese, defendida pelos locais, é que se tratava de artilharia antiaérea de Saddam Hussein desviada por erro ou má-fé -o ditador, da minoria sunita, perseguia xiitas como Ramadan.
O vendedor acha a vida melhor hoje. Seu bairro não melhorou muito. O esgoto continua a céu aberto, as moscas abundam, há inundação nas chuvas. Mas as lojas vendem eletrônicos de última geração e celulares, num cenário não muito diferente das favelas paulistanas.
Em dez anos, de 110 mil a 120 mil civis iraquianos morreram, segundo o grupo Iraq Body Count. Cerca de US$ 2,2 trilhões foram gastos pelos EUA no conflito, de acordo com a Brown University -equivalente à riqueza produzida pelo Brasil em 2012.
Levantamento Gallup divulgado ontem conclui que 53% dos americanos acham que ir à guerra foi um erro. Não há pesquisas confiáveis entre os iraquianos, mas o sentimento geral parece ser de duplo alívio -com a queda, prisão e execução de Saddam e com a retirada dos americanos, no fim de 2011.
Outros personagens de 2003 aproveitam a data para um balanço. É o caso de Hazam Salah, hoje com 46 anos, que cuidava de um estacionamento ao lado do Ministério das Telecomunicações quando um míssil americano atingiu a rua sem ser detonado, deixando uma cratera.
O buraco foi coberto, mas as marcas estão lá. "Como não sou político nem religioso, Saddam me deixava em paz, mas as coisas de fato melhoraram", diz Salah, hoje dono de um estacionamento.
Menos feliz é a família Abdalla. Os irmãos, suas mulheres e seus filhos e netos moram desde o século 19 na mesma vizinhança. Que nos anos 70 recebeu o escritório central do correio iraquiano, seguido nos anos 90 por uma antena de telefonia, atingida em 2003 por um míssil.
Ao ver a foto da Folha feita então, os Abdalla revelam que suas casas já foram destruídas três vezes: na Guerra do Golfo de 1991, na Operação Raposa do Deserto, em 1998, quando o governo de Bill Clinton atingiu alvos iraquianos, e na guerra de 2003.
Eles se dividem hoje entre duas salas improvisadas ao ar livre -Bagdá não vê chuva 330 dias por ano-e um contêiner dado pelos americanos antes de sua saída.
"Que culpa temos de morar aqui?", pergunta Mansur Abdalla, 39, que com a morte dos pais há dois dias virou o patriarca. "Quem vai nos ressarcir?"

    FRASES
    "Ganho dez vezes mais -US$ 250 por mês- e posso falar o que penso"
    FUAD RAMADAN
    comerciante, comparando sua vida em 2003 e hoje, depois da guerra; ele foi fotografado pela Folha dez anos atrás
    "Como não sou político nem religioso, Saddam me deixava em paz, mas as coisas de fato melhoraram"
    HAZAM SALAH
    dono de estacionamento em Bagdá, sobre mudança no dia a dia da cidade
    "Que culpa temos de morar aqui? Quem vai nos ressarcir?"
    MANSUR ABDALLA
    patriarca de família cujas casas foram atingidas três vezes desde 1991 e hoje mora em contêiner e sala improvisada

    Iraque é viável, diz embaixador brasileiro
    DO ENVIADO A BAGDÁHá pouco mais de um ano e pela primeira vez em duas décadas, o Brasil conta com embaixada própria em Bagdá, depois de um período de representação à distância, na vizinha Jordânia.
    Seu titular, Ánuar Nahes, 60, tomou posse em março de 2012, num dos postos mais perigosos da diplomacia mundial e mais bem pagos da brasileira. Leia trechos da entrevista que ele concedeu por e-mail à Folha.
    (SD)
    -
    Folha - Em que as relações Brasil-Iraque mudaram entre 2003 e 2013?
    Ánuar Nahes - Na esteira da invasão do Kuait em 1991 por tropas do regime de Saddam Hussein, o Brasil desativou sua embaixada em Bagdá e a transferiu para Amã, inicialmente como seção da Embaixada na Jordânia.
    Mas, tão logo instaurado pela ONU o regime de Petróleo por Alimentos, o Brasil retomou contatos comerciais. À medida que o Iraque pós-2003 começou a se reestruturar, eles foram aumentando.
    Com a retirada das tropas americanas, em 2011, o governo brasileiro considerou ser o momento de reabrir sua embaixada. Eu já estava em Amã desde dezembro de 2011 e cuidei da transferência. Nunca interrompemos as relações: só as adequamos às circunstâncias da história.
    O Iraque já foi um dos principais parceiros comerciais do Brasil, nos anos 80. Como aumentar e tornar mais variada a pauta comercial entre os dois?
    O Iraque é um país rico, precisa se reconstruir, luta para se reerguer internamente e se reposicionar internacionalmente. Atualmente, não focamos as relações apenas no setor comercial. Há cooperação cultural, educacional, coordenação política.
    É só dar tempo ao tempo, aproveitar as oportunidades e seguramente o relacionamento bilateral se intensificará.
    O Iraque é viável como país? A violência sectária não pode inviabilizar o projeto de união?
    Sim, é viável. Sempre existem os interessados em fazer o jogo étnico ou sectário para atender a seus projetos de poder. Se o Iraque mantiver o regime democrático e fizer eleições regularmente nos próximos 10 a 20 anos, terá vencido a batalha. No Brasil foi assim. Democracia se constrói com paciência e pertinácia.

      PERSONAGENS DA GUERRA
      O que aconteceu com eles depois de 2003
      Kadom al Jabouri, 52
      Fisiculturista ficou famoso ao ser exibido na TV martelando a base da estátua de Saddam que acabara de ser derrubada. "Eu odiava Saddam, mas o que veio depois dele foi desapontador", diz hoje
      Salam Pax, 40
      Blogueiro que ganhou fama mundial com a invasão hoje é assessor de imprensa da Unicef, usando seu nome verdadeiro, Salam Abdulmunem. Procurado, ele disse que não quer falar sobre a invasão
      Tariq Aziz, 76
      Único cristão do gabinete de Saddam Hussein, ex-chanceler e ex-vice-premiê foi condenado à morte em 2010 e continua preso em Bagdá, aguardando a execução


      DIÁRIO DE BAGDÁ - 10 ANOS DEPOIS
      Ônibus de dois andares voltam à capital; moeda do país se valoriza
      Elba em Bagdá 1
      Dez anos depois, os ônibus de dois andares estão de volta a Bagdá. Sumidos desde a queda de Saddam Hussein, em 2003, os típicos veículos vermelhos londrinos circulam pela cidade para alegria dos bagdalis -são os únicos com ar-condicionado. Londrinos, pero no mucho: da marca Elba, são fabricados na Jordânia. E têm o motor desligado caso o motorista resolva se desviar da rota preestabelecida.
      Elba em Bagdá 2
      Apesar disso, são raros os ônibus em Bagdá (risco de terrorismo + calor de 50ºC no verão + descaso do governo). Mais raros ainda são os motoqueiros -e inexistentes os motoboys.
      Dinheiro na mão
      Há dez anos, o Iraque era isolado da comunidade financeira internacional pelo bloqueio das Nações Unidas.
      Assim, para o estrangeiro no país receber dinheiro, tinha de encontrar um iraquiano confiável com conta na Jordânia, que dava o equivalente em dinares locais aos dólares que fossem depositados para ele lá fora, menos uma comissão.
      Hoje, saques em caixas eletrônicos (a maioria deles ainda em hotéis) são operação corriqueira.
      Dinheiro na mão 2
      O dinar também se valorizou. Não era incomum ver pessoas com quilos de notas com o rosto de Saddam Hussein em barracas na rua -ninguém roubava, ninguém ligava, a cotação era 3 milhões de dinares para US$ 1.
      Atualmente, mil dinares novos compram o mesmo tanto de dólares.
      Para casar?
      Dependendo da divisão do islamismo a que pertence e do povoado ou da tribo de que vêm, os homens árabes podem se cumprimentar com três beijos, como os cariocas. No Iraque, a juventude economiza tempo dando os três na mesma bochecha.

        País vive nova onda de violência sectária às vésperas de pleito
        Sunitas e xiitas retomaram ataques em 2011; 130 civis foram mortos desde início de março
        DO ENVIADO A BAGDÁDesde que a Folha chegou a Bagdá, na segunda-feira, 4 de março, 130 civis iraquianos foram mortos de maneira violenta, vítimas da segunda onda de disputa sectária que toma o país desde a invasão de 2003. Outros 134 foram feridos.
        Eles se juntam a um grupo que, só em 2013, já passa dos 2.000. Um deles é Hyder Hasson, 18. No dia 28 de fevereiro, na avenida que cruza Al Shola, na periferia de Bagdá, e divide uma comunidade xiita de uma sunita, ele assistia a um jogo de futebol. Jogadores e plateia eram xiitas.
        No campo de terra, estavam dois times amadores de amigos dele. No meio do jogo, Hasson ouviu um estouro. Ele e todos os outros olharam para trás e viram um carro-bomba explodido.
        Antes que pudessem voltar a atenção de volta para o jogo, um suicida com um colete de explosivos já estava no meio do campo.
        Depois de gritar Allahu Akbar (Deus é o maior, em árabe), ele puxou o detonador, se matando e a 24 dos jogadores e plateia. Eram meninos entre 15 e 24 anos.
        Hasson sobreviveu e conta a história à Folha. Nos memoriais improvisados, há fotos de todos os mortos. Num deles, as luvas do goleiro estão com as pontas dos dedos queimadas.
        No lado oposto do campo, a banda sunita da avenida, a trave está intacta. No lado onde a maior parte das mortes ocorreu, a banda xiita, a trave está torta como um grande canudo usado de refrigerante. Originalmente branca, traz marcas de sangue.
        O menino levanta a calça do abrigo: há uma ferida ainda aberta da explosão na perna esquerda. Ele levanta a blusa do abrigo e mostra cicatrizes antigas no braço esquerdo. Hasson é um sobrevivente duplo: quando era mais jovem, estava presente em outro ataque suicida, que não o matou.
        INSURGÊNCIA
        Até a queda de Saddam Hussein, em 2003, as duas comunidades viviam lado a lado em relativa harmonia. Os ataques começaram durante o auge da insurgência contra a presença americana, entre 2005 e 2007. Xiitas atacavam sunitas, que atacavam xiitas; eventualmente, os dois lados se aliavam para atacar o invasor.
        Com a saída dos americanos, no fim de 2011, extremistas ligados à Al Qaeda do lado sunita retomaram os ataques. Milícias do lado xiita voltaram a retaliar. E grupos em ambos os lados usam de rapto e sequestro para o financiamento de armas.
        A situação tende a piorar conforme se aproximam as eleições municipais de abril. Em Nínive, província de maioria sunita no norte do país, 14 pré-candidatos retiraram sua candidatura, e 150 funcionários eleitorais revelaram ter recebido ameaças.

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