terça-feira, 19 de março de 2013

Francisco Daudt

folha de são paulo

Utopias
Quando o distanciamento da realidade é levado a sério, o sujeito é um escolhido pelos deuses
"ONDE É que ele está com a cabeça?", perguntei-me ao ouvir o candidato à presidência dizer que o PT era o bolchevismo sem utopia. Fiquei pensando na frase por bem uns minutos até entender que, em linguagem de dia de semana, o que a frase queria dizer era: o PT é autoritário e não é idealista.
Utopia: "não-lugar" (lugar que não existe), a ilha ideal que morava na cabeça de Thomas Morus antes que Henrique 8º o decapitasse, existe sim na nossa cabeça onde vários lugares existem, quase todos eles diferentes daquele em que estamos -as chamadas heterotopias (lugares diferentes, do grego).
"A felicidade está onde nós a pomos, e nós nunca a pomos onde estamos", dizia meu avô. De fato, o mais comum em nossas vidas é estarmos com a cabeça em outro lugar, como o candidato falando para um público muito culto, enquanto o outro falava para as multidões.
Quem venceu?
Não é que passear pelas heterotopias seja algo errado ou doentio. Estamos parados no tráfego, mas, com o rádio do carro ligado, viajamos para longe dali, ainda bem. Certo, ela pode ser perigosa se falamos ao telefone dirigindo. Digitar é bem pior. Quando nos apaixonamos, viramos nefelibatas (andamos nas nuvens), com a cabeça no mundo da lua. O emprego está chato, mas já estou naquelas férias planejadas.
Todas as drogas e vícios, tabaco, álcool, carboidratos e compras desnecessárias têm a sedução de nos tirar de onde estamos e nos transportar, por minutos que seja, para um mundo diferente.
Na heterotopia mora o planejamento: vejo-me velho, daqui a uns trinta sempre adiáveis anos, mas amparado pela previdência ("a capacidade de ver antes"), não a pública, deus me perdoe, mas a que construí com meu trabalho -que ser velho já é ruim, pobre então...
Claro, há heterotopias malucas, quando o distanciamento da realidade é levado a sério, o sujeito é um escolhido pelos deuses, é uma reencarnação de Napoleão, de Jesus Cristo (é curioso, mas os napoleões de hospício saíram de moda... será falta de cultura?), e etc.
A utopia é uma heterotopia do tipo faca de dois gumes. O primeiro gume corta o tempo-espaço como um farol-guia, dando princípios éticos que sabemos inatingíveis, mas que valem pela simples tentativa.
O segundo gume corta pescoços, ceifa vidas em seu nome. A primeira vez que entrei em contato com uma delas foi pelo livro "A chave do tamanho", de Monteiro Lobato. Como tantos comunistas, ele tinha a utopia da sociedade perfeita, pacífica e semelhante a uma colmeia de abelhas instalada por golpe extremo (a "revolução").
Emília, incomodada com a 2ª Guerra, reduz o tamanho dos humanos a poucos milímetros. Claro, a guerra cessa, e os sobreviventes (bilhões são devorados por gatos, cães, pássaros etc. Mas, para a utopia, sempre há um "pequeno custo") se organizam na "cidade do balde", todos iguais, bondosos, pacíficos e cooperativos, uma espécie de falanstério de Fourier.
Pela utopia homens se explodem, já morando no paraíso com suas virgens (e as mulheres-bomba, o quê as motiva?)

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