quinta-feira, 25 de abril de 2013

A conquista do DNA

folha de são paulo


Terapia gênica lançada na Europa marca 60 anos da decifração da estrutura do DNA



REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Seis décadas depois que o americano James Watson e o britânico Francis Crick contaram vantagem num pub de Cambridge (Reino Unido), dizendo que tinham descoberto "o segredo da vida" ao decifrar a estrutura do DNA, a pesquisa sobre genética vive um momento ambíguo, no qual triunfos se misturam a uma lista de mistérios que ainda é um bocado comprida.
O aniversário de 60 anos da descoberta de Watson e Crick, publicada em 25 de abril num artigo na revista científica "Nature", acontece no ano em que o primeiro tratamento cujo objetivo é alterar o DNA do paciente chega ao mercado dos países desenvolvidos.
Trata-se do Glybera, que usa um gene humano, carregado por um vírus, para corrigir uma rara doença metabólica, a LPLD.
A doença impede que o organismo absorva corretamente certos tipos de gordura, o que causa problemas no pâncreas. No mercado europeu, onde foi aprovado, o tratamento deverá custar cerca de US$ 1 milhão por paciente.
"É uma coisa que só dá para fazer na Europa por enquanto, porque o sistema de saúde de lá absorve esse custo", explica Carlos Frederico Menck, biólogo do Instituto de Ciências Biomédicas da USP que estuda o uso de vírus como "entregadores" de genes terapêuticos.
Para ele, o tratamento representa um avanço porque o vírus, além de aparentemente não causar nenhum tipo de doença nem reações do sistema de defesa do organismo, não se integra diretamente ao DNA dos pacientes, o que minimiza o risco de bagunçar o genoma dos doentes e causar outros problemas.
Mais importante ainda, usando um sistema de cultivo em células de insetos, os criadores da terapia parecem ter resolvido outro velho problema da terapia genética: a quantidade de vetores virais necessária para se conseguir um efeito duradouro.
"Estou muito otimista em relação à perspectiva de que século 21 seja o século da terapia gênica, combinada com a terapia celular", diz ele. "Pode ser que eu ou você não vejamos isso, mas as coisas estão caminhando --ainda que numa velocidade que é naturalmente lenta."
É mais difícil, no entanto, pensar na aplicação generalizada desse tipo de terapia em doenças mais comuns, como o câncer, pondera Emmanuel Dias-Neto, do Laboratório de Genômica Médica do Hospital A.C. Camargo, "pelo menos no estágio atual".
"Em geral, para uma entrega eficiente da terapia, você tem de ter acesso às células-alvo. Se temos acesso, é preferível remover o tumor, e não tratá-lo", diz ele.
GENE? QUE GENE?
Apesar desses avanços práticos, entender como o conjunto do DNA funciona está cada vez mais complicado, em parte porque ele é muito mais complexo do que os pioneiros sonhavam. E uma das baixas é o próprio conceito de gene.
Ele seria o que "realmente importa" no genoma, um trecho de DNA que contém a receita para a produção das proteínas, principais responsáveis pelo funcionamento da célula (veja infográfico abaixo).
Mas o refinamento das análises do genoma mostrou que genes podem ter "múltiplas personalidades", e que outros elementos que nada têm a ver com proteínas são cruciais para regular o material genético.
"Nesse contexto, é possível afirmar que hoje nós não possuímos um conceito satisfatório de gene", diz Igor Schneider, biólogo da UFPA (Universidade Federal do Pará).
Alysson Muotri, brasileiro que é professor da Universidade da Califórnia em San Diego, é mais diplomático: "O conceito de gene muda o tempo todo. A versão simplificada do dogma é uma introdução ao problema".
A questão, porém, é saber se a quantidade real de interações entre os vários elementos do genoma, e entre eles e o ambiente, é tão complexa no caso da maioria das doenças que intervenções focadas no DNA estariam fadadas ao fracasso.
"Acho isso pessimista demais", diz Muotri. "Acredito que seremos capazes de entender a interação genoma-ambiente no futuro e produzir terapias efetivas." Para ele, a demora em avançar é natural quando se leva em conta a necessidade de comprovar com experimentos o papel de cada gene e como ele reage a variações ambientais. "A biologia experimental está só começando", afirma.
Emmanuel Dias-Neto, por sua vez, aponta avanços no que chama de "medicina de precisão", como saber que determinadas alterações genéticas no tumor de um paciente vão tornar o câncer mais ou menos resistente a certos medicamentos, além de prever o risco de metástase (o espalhamento do tumor).
Obter esse tipo de informação "a custos bem razoáveis" ficará mais fácil no futuro próximo, diz ele.
"Isso vai gerar um efeito bola de neve: o sequenciamento [leitura] rápido e barato do DNA gera informações em massa, que dão suporte para o conhecimento da doença e devem justificar a geração de dados de mais indivíduos, em uma roda viva que se retro-alimenta", afirma. "Legislação e currículo médico vão ter de correr atrás do prejuízo, pois nenhum dos dois está preparado para o que vem por aí."
BRINCANDO DE CRIADOR
Ainda sem aplicações médicas imediatas, outra área que tem ganhado força é a chamada biologia sintética. É mais do que uma versão um pouco mais complicada dos velhos organismos transgênicos: em vez de inserir um único gene de água-viva num embrião de coelho para fazê-lo brilhar no escuro, digamos, o plano é montar genomas customizados "do zero".
"Atualmente, o maior desafio desse campo é produzir a primeira célula bacteriana sintética", explica Igor Schneider, da UFPA. Esses organismos teriam aplicações econômicas, como a produção de plástico "verde" ou a limpeza de áreas poluídas.
Mas há quem fale em ir mais longe. George Church, da Universidade Harvard, diz que seria viável usar as técnicas da biologia sintética para alterar totalmente o genoma de um elefante moderno, digamos, para que ele se assemelhe ao de um mamute, ressuscitando espécies extintas.
"Esse campo levantará questões éticas", diz Schneider. "Em muitos países, é ilegal patentear material genético de seres vivos. Seria ilegal patentear genes de um organismo que você inventou?"
Editoria de Arte/Folhapress

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