Sob intenso debate, o projeto que põe fim
à escravidão passa na Câmara dos Deputados. Texto segue para o Senado.
Nas ruas do Rio, 5 mil manifestantes acompanharam votação
Renata Mariz e Ivan Iunes
Estado de Minas: 11/05/2013 04:00
Exatos 125 anos atrás, o Brasil Império,
sob o comando de uma princesa interina, passava por uma ebulição social
nunca vista nos mais de três séculos de história documentada desde o
descobrimento, em 1500. No início de 1888, começavam a se desenhar os
acontecimentos que culminariam em um dos mais importantes marcos legais
do país: a Lei Áurea. Para recontar esse momento emblemático, o Estado
de Minas convida você, caro leitor, a uma viagem no tempo. Até
terça-feira, a série de reportagens Abolição, 125 anos volta ao Rio de
Janeiro da segunda metade do século 19, província que abrigava o poder
político da época, para contar como se deu a extinção da escravidão no
Brasil em seus quatro dias decisivos. As reportagens mostrarão os
embates entre deputados e senadores, a pressão do governo imperial e o
quanto as relações de poder à época guardam semelhanças inegáveis com os
tempos atuais. Para isso, a cada dia, questões contemporâneas
relacionadas à desigualdade racial brasileira serão trazidas à tona. Uma
boa viagem!
Milhares de lírios e rosas cobriram ontem a Rua
Primeiro de Março. Nas imediações da Câmara dos Deputados, no Centro do
Rio de Janeiro, o clima de comoção tomou conta dos cerca de 5 mil
manifestantes que acompanharam a votação do projeto de lei que extingue a
escravidão no país. Depois de três dias de discursos ácidos e de
provocações mútuas dos parlamentares, a proposta, enviada à Assembleia
Nacional pela princesa imperial regente, Isabel, foi aprovada por 83
votos a favor e nove contra. Única nação do mundo ocidental que mantém o
regime de servidão, o Brasil nunca esteve tão próximo de extirpar o que
vem sendo chamado de “cancro social” pelas campanhas de emancipação.
Para o rompimento total dos grilhões, contudo, é necessária ainda a
chancela do Senado, que começará a examinar o texto hoje mesmo.
Apesar
do temor em torno de um retrocesso no Senado, conhecido pelo
conservadorismo em suas posições, a festa nas ruas se estendeu por
horas. Com flores e aplausos, homens e mulheres descalços, evidenciando a
condição de criados — já que o uso de sapatos é permitido apenas às
pessoas livres nos dias atuais —, festejaram ao lado dos milhares de
brancos que apoiam a abolição. Antes mesmo de o resultado da votação ser
anunciado, era grande o frisson no plenário da Câmara, cujas galerias
ficaram lotadas de gente atenta aos movimentos dos parlamentares. Palmas
e gritos de “Apoiado!” chegaram a irritar o deputado Andrade Figueira,
do Partido Conservador, ferrenho defensor da manutenção da escravidão.
“A invasão de pessoas estranhas converte a augusta majestade do recinto
em circo de cavalinhos”, reclamou.
Dono de uma postura radical,
Figueira protagonizou, na sessão de terça-feira — quando o projeto
começou a ser analisado em plenário —, um dos embates mais tensos dos
últimos dias, ao discutir com o deputado Joaquim Nabuco, do Partido
Liberal em Pernambuco, sobre o cumprimento do Regimento Interno da Casa.
Ao questionar a celeridade, medida em minutos, com que a comissão
especial criada para analisar o projeto apresentou o parecer, Figueira
disparou: “Quaisquer que sejam as impaciências para converter em lei a
proposta do governo é preciso colocar, acima de tudo, a legalidade dos
atos do parlamento”, disse o deputado do Rio de Janeiro. A queixa foi em
vão. Por maioria, a Câmara entendeu que o prazo de 24 horas é
necessário apenas para os colegiados ordinários, e não para uma comissão
especial, caso em questão. O primeiro dia de debates terminou,
entretanto, sem definição clara do resultado final.
Anteontem, os
deputados retomaram as discussões. O ministro da Agricultura, Rodrigo
Silva, emissor formal da proposta que a Coroa enviou ao parlamento,
abriu os trabalhos da Câmara com um discurso contundente em defesa do
projeto. Ele citou a Lei dos Sexagenários, em vigor há menos de três
anos, que concede liberdade a escravos idosos, como um prelúdio da
libertação total. Diante das sugestões, por vezes discreta, de
modificação do texto para postergar por alguns anos a abolição, o
deputado Araújo Góes se apressou em apresentar uma emenda à redação do
projeto deixando claro que a lei vigoraria desde a data da sanção da
princesa regente.
Nesse momento, o deputado Spinola Zama, da
Bahia, e defensor da abolição, requereu votação nominal da proposta,
para que os nomes ficassem gravados nos anais da Casa. O dia terminou
com o placar de 83 votos favoráveis e nove contrários, selando a
aprovação do projeto em segundo turno. A terceira e última discussão,
travada ontem, foi marcada por pronunciamentos conformistas, por parte
dos que já se viam derrotados no debate. Por entendimento do plenário, a
proposta entrou na terceira e última fase de apreciação sem que fosse
necessário aguardar a impressão do projeto, que tem apenas dois artigos.
Sem debate, foi aprovado e remetido ao Senado.
Visivelmente
emocionado, Nabuco pediu a palavra para mandar um recado aos colegas de
parlamento. “Vamos esperar da sabedoria, da generosidade, do patriotismo
do Senado que ele — onde, infelizmente, não existe o encerramento das
discussões — não impeça a passagem de uma lei como esta.” O deputado,
que se tornou uma das vozes mais eloquentes em favor da abolição neste
século, arrematou o discurso, sob gritos de “Apoiado!”, festejando a
quase unanimidade na aprovação do projeto. “Não há vencidos nem
vencedores nesta questão, são ambos os partidos políticos unidos que se
abraçam neste momento solene de reconstituição nacional”, disse Nabuco.
Efeito para 800 mil escravos
Caso aprovado pelo Senado, projeto libertará 5% da população do país
Renata Mariz
Muitos dos cerca de 4
milhões de africanos que chegaram ao Brasil em mais de 350 anos de
tráfico negreiro não sobreviveram à viagem, às doenças, aos chicotes.
Parte dos que conseguiram driblar a morte têm conseguido, nas últimas
três décadas, comprar suas alforrias ou, simplesmente, fugir. Na atual
conjuntura do país, que chegou a ter cerca de 20% da população escrava, o
projeto de lei, caso aprovado pelo Senado, libertará os atuais 805 mil
servos. O número representa 5% da população atual,
de 14 milhões de pessoas.
Além
do fortalecimento do movimento abolicionista, apontado como a primeira
onda nacional de opinião pública, outro fato já vem enfraquecendo, há
pelo menos duas décadas, a instituição da escravidão. Uma leva de
imigrantes europeus tem aportado nas cidades brasileiras, tornando-se
substitutos naturais da mão de obra africana. De 1870 para cá, é visível
o aumento de italianos, alemães e portugueses nas lavouras de cana e de
café, e nos aglomerados urbanos das províncias mais desenvolvidas.
Justiça se antecipa
Escravos em uma
fazenda no interior de São Paulo, Jozé e Albina conquistaram a
liberdade, pagando a quantia de 200 mil réis a título de indenização ao
senhor, em janeiro. O casal de africanos, que não sabe ao certo há
quanto tempo está em solo brasileiro nem usa sobrenome nos documentos
referentes à alforria obtida, utilizou-se de um expediente inovador
entre os negros cativos no Brasil: o recurso à Justiça. São cada vez
mais comuns as ações de liberdade, muitas vezes patrocinadas por
entidades abolicionistas espalhadas pelo país. Levantamento da
reportagem mostra que um quarto dos pedidos é atendido pelos
magistrados.
O número se refere às ações de liberdade ajuizadas
no Tribunal de Justiça de Campinas, em São Paulo. De 1871 até hoje, 152
processos tiveram início naquele juizado, que deu ganho de causa aos
escravos em 26,3% dos casos. Em 63,2%, o Judiciário determinou a
manutenção da relação servil ou não há registros suficientes no arquivo
da Corte sobre o desfecho. Um acordo posterior entre senhor e escravo
foi a solução encontrada em 10% dos litígios. Dos alforriados por
determinação da Justiça, 52% são homens e 48%, mulheres.
NA
FRENTE Enquanto o parlamento brasileiro se debruça sobre o projeto de
lei enviado pela princesa regente, Isabel, abolindo a escravidão em todo
o território nacional, duas províncias saíram na frente. Seguindo o
exemplo do pequeno município de Icarapé, no Ceará, que libertou todos os
seus escravos há quatro anos, o governo do estado decidiu extinguir a
servidão. Em seguida, veio o Amazonas.
Nas demais províncias,
porém, são cada vez mais comuns iniciativas particulares de alforria
coletiva. Se, por um lado, tem sido difícil para muitos senhores manter a
ordem nas senzalas, de outro, libertar escravos poderia render títulos
de nobreza, uma espécie de incentivo dado pela Coroa.
SAÚDE DELICADA O
último boletim sobre a saúde de dom Pedro II, imperador do Brasil,
afastado há 10 meses para tratamento médico na Europa, aponta o
diagnóstico de pleurite seca. O mal, caracterizado por uma inflamação
das pleuras pulmonares, levou três médicos respeitados – os italianos
Mariano Semmola e De Geovanni, e o francês Charcot – a se deslocarem até
Milão, na Itália, há uma semana, para examinar o estado de saúde do
monarca.
Apesar de ter à disposição especialistas estrangeiros, o
imperador segue acompanhado de Cláudio Velho da Mota Maia, filho de um
mordomo criado sob a proteção da família real. Patrocinado por dom Pedro
II, o mancebo frequentou faculdades europeias de medicina e passou a
cuidar pessoalmente da saúde do padrinho, mesmo sob protestos de
parentes e amigos, para quem Mota Maia tenta esconder o real estado do
paciente, além de controlar suas decisões. (RM)
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