sábado, 11 de maio de 2013

O suicídio literário de Karl Knausgard

estado de são paulo

Norueguês vem à Flip falar sobre a polêmica série autobiográfica 'Minha Luta', que resultou em sua retirada da ficção

Maria Fernanda Rodrigues - O Estado de São Paulo
Um escritor insatisfeito com o resultado do trabalho de uma manhã olha fixamente para o piso do escritório que acabara de alugar e vê nos nós da madeira a imagem de Cristo. Ele levanta, vai passar um café e é imediatamente levado para uma tarde qualquer da infância: ele, sozinho na sala, vendo um rosto no mar enquanto o noticiário da TV mostra o local do naufrágio de um barco; ele correndo para contar sua visão ao pai no jardim.
Karl Knausgard - Reprodução
Reprodução
Karl Knausgard
Não é assim que começa o primeiro volume da série Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgard. Mas foi aí que o autor encontrou a conexão entre o passado e o presente e conseguiu concluir um projeto frustrado ano após ano durante uma década - escrever uma ficção sobre o pai. E o que era um experimento literário resultou numa grande briga familiar. Porque essa história que ele tanto queria contar, sobre a transformação de um homem de família num bêbado e sua derrocada, só saiu na forma de não ficção.
O protagonista é Karl Ove Knausgard e os personagens, familiares, amigos, a mulher, a ex-mulher, os filhos. Todos ali, expostos com seus nomes verdadeiros. "Minha família tentou proibir o livro. A questão ética foi levantada - mas não porque escrevi alguma mentira sobre eles, mas porque escrevi tão abertamente sobre meu pai", conta o autor, de Beirute, onde participou esta semana do Hay Festival. Ele é um dos convidados da Festa Literária Internacional de Paraty, em julho, quando lança, aqui, A Morte do Pai (Companhia das Letras). Ele, porém, não considera sua iniciativa antiética. "Não revelo nada sobre ninguém, só sobre meu pai e minha avó, que já estão mortos", diz. Mesmo assim. Contar a intimidade de sua família não pegou bem. No entanto, como todo livro polêmico, a obra virou best-seller na Noruega.
Knausgard não assistiu a essa reação toda. Enquanto escrevia, não leu as resenhas, não viu televisão. "Estava tentando me proteger. Tenho um lado autista, que não se preocupa com ninguém, e por isso pude continuar." Hoje ele não fala mais com a família, exceto com a mãe e o irmão, que ficaram bravos no início, mas acabaram aceitando.
"Essa é a história mais importante da minha vida e eu tinha que escrevê-la", conta. Quando começou o livro, aos 40, ele já era pai e essa figura em que seu próprio pai se transformou pesou sobre ele como uma ameaça. "Se isso aconteceu com ele, poderia ter acontecido comigo."
Durante toda a narrativa, o que vemos é a tentativa de um encontro com esse pai ausente mesmo quando presente. Um encontro do autor com ele mesmo e a descoberta de sua identidade. E isso se dá na infância e adolescência, que ocupam a primeira parte do livro, no tempo presente, da escrita da obra, e num passado não muito distante, quando a tão esperada, porque previsível, notícia da morte do pai chega e ele volta para casa com o irmão para enterrá-lo.
O cenário que encontram é de guerra. O apartamento da avó, para onde ele se mudara depois de algumas tentativas de tratamento, está destruído, com garrafas de bebida barata pelos cantos, pilhas de roupa suja, urina e fezes no sofá, vômito no tapete. Essa descrição poderia ser usada para a própria avó de mais de 80 anos, ela também abandonada, que encontrou o filho morto na poltrona.
"Enquanto escrevia sobre minha infância, fui tomado por uma alegria, a alegria desse tempo, mas foi emocionalmente difícil escrever sobre ele e sobre morte", conta. Tudo o que está na obra aconteceu, garante, embora confesse não se lembrar exatamente dos diálogos - e abusa deles.
Abusa também das descrições, por vezes, desnecessárias. Levou, por exemplo, seis páginas para dizer como era ruim na guitarra e outras seis para contar como o primeiro show de sua banda foi um desastre. Escreve, ainda, coisas do tipo: "O banho não me ajudou em nada, então desliguei o chuveiro e me enxuguei com uma toalha grande, passei um pouco de desodorante nas axilas, me vesti e fui à cozinha para ver as horas, secando o cabelo com uma toalha menor". Há outras passagens como essa nas 512 páginas deste primeiro volume, que era para ser único.
"Quando terminei, percebi que havia um estilo ali de contar histórias sobre a vida cotidiana, sobre o que acontece entre os grandes momentos, e resolvi continuar." Em dois anos escreveu os cinco primeiros títulos. O derradeiro levou mais um ano - ele traz um ensaio de 400 páginas sobre Mein Kampf, obra de Hitler que serviu de inspiração para o título da série - outra polêmica. "É a minha luta, a luta diária de todo mundo. Mas ao mesmo tempo é uma luta universal, ideológica. Queria um título que conectasse todos esses demônios", explica. "Foi uma forma de dizer dane-se eu não me importo, que foi como me senti enquanto escrevia", completa.
O autor não imaginou que tinha tanto fôlego e que sua vida renderia tantos volumes. "Fui ingênuo, não percebi o tamanho do que eu estava fazendo, mas isso foi totalmente necessário para mim." Mas agora disse chega. Com a série Minha Luta - por enquanto, a Companhia das Letras só comprou os direitos dos dois primeiros títulos -, ele se aposenta da ficção.
"Quando tinha 19 anos, frequentei um curso de escrita criativa e uma das regras era não chegar ao principal conflito de sua vida. Era o que queria fazer. Queria esvaziar tudo, e a isso dou o nome de suicídio literário. Não quero escrever outro romance." Se voltar a escrever, ficará com os ensaios ou talvez se arrisque na ficção científica. "Você só escreve ficção quando está infeliz, quando há algo quebrado, e espero que meus filhos não queiram ser escritores porque aí saberei que algo está errado." As crianças, de 9, 7 e 6 anos, e a mulher também virão à Flip.
Se valeu a pena? "Sim, mas eu não seria capaz de ir lá de novo. Não, não quero voltar", conclui. 

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