sábado, 11 de maio de 2013

Quem é o dono da voz Ailton Magioli‏


Estado de Minas - 11/05/2013

A recente liminar da juíza Simone Lopes, da 2ª Vara Cível do Rio, que obriga a multinacional EMI Music a devolver ao cantor João Gilberto os masters de três LPs (Chega de saudade, de 1959; O amor, o sorriso e a flor , de 1960, e João Gilberto, de 1961), depois de mais de 20 anos de disputa judicial, traz à tona uma velha discussão. Afinal, quem é o dono da obra musical, que passa obrigatoriamente por três estâncias: a editora que a publica, a gravadora que a registra em disco, além, claro, do próprio autor?

Para a juíza carioca, que usou como argumento o avanço da idade do cantor, “é evidente a urgência de viabilizar que João Gilberto, aos 81 anos, possa se debruçar sobre sua obra (...), havendo inegável risco de o artista já não ter condições para tanto se esperar pelo julgamento final”.

 A EMI Music diz que não vai se pronunciar a respeito do assunto, ainda que, por se tratar de liminar, a decisão possa ser contestada. Para a assessoria de imprensa da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), esta é uma questão particular da EMI e a ABPD, até por desconhecimento de causa, declina de fazer qualquer comentário. O recolhido João Gilberto, por sua vez, mantém-se calado há décadas diante deste e de outros temas.

Artistas envolvidos em questões parecidas, no entanto, dão sua opinião a respeito do assunto, assim como especialistas em direitos autorais. O advogado carioca Sydney Sanches, por exemplo, mesmo não tendo acesso à ação, acredita que ela seja desdobramento de uma primeira, que impediu a gravadora multinacional de comercializar a coletânea O mito, lançada nos anos 1990, reunindo faixas dos três discos.

“Deve ter havido uma quebra de contrato para retomar a titularidade dos fonogramas”, arrisca uma opinião, lembrando que a legislação brasileira a respeito do assunto acompanha normas internacionais sobre direitos de autor e direitos conexos (de intérprete). Sydney Sanches, que é presidente da comissão dos direitos autorais do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), lembra que, pela lei brasileira, o titular de toda gravação sonora é a gravadora.

 “O intérprete, no entanto, participa do resultado toda vez que houver utilização econômica da obra”, adverte o advogado, que presta serviços para a União Brasileira de Compositores (UBC) e para a União Brasileira de Editoras Musicais (UBEM).

Uakti Ao lamentar a ausência dos três primeiros discos do Uakti dos atuais catálogos, o músico Artur Andrés vislumbra uma brecha para o grupo, diante da decisão da juíza carioca sobre a obra de João Gilberto. Originalmente lançados pela gravadora Ariola, extinta em 1987, Uakti – Oficina instrumental, de 1981; Uakti 2, de 1982, e Tudo e todas as coisas, de 1984, acabaram passando a integrar o catálogo da Polygram, atualmente Universal Music, que adquiriu o acervo da Ariola no Brasil.

Depois de participar da gravação de três faixas do disco Sentinela, de Milton Nascimento, lançado pela Ariola, o Uakti foi embutido no contrato do artista com a gravadora alemã, por meio do qual 10 instrumentistas integrariam o cast da multinacional, incluindo o grupo mineiro. “Éramos iniciantes, com potência enorme, mas sem repertório”, recorda Artur Andrés. “Na época, o Uakti não tinha sequer repertório para gravar um disco”, salienta.

“Óbvio que o fato de Milton Nascimento estender a mão para nós foi um fator muito importante para o grupo”, reconhece o instrumentista, admitindo que hoje não há quem tome iniciativa do gênero no mercado fonográfico. Posteriormente reunidos em uma caixa, pelo selo Verve, de Nova York, os três discos do Uakti foram remasterizados e lançados, no Brasil, pela Polygram, até serem retirados do catálogo da multinacional, também extinta, hoje pertencente à Universal Music.

“Tentamos negociar com a gravadora para liberar os três discos, mas não deu certo”, recorda Artur Andrés. Agora, finalmente, o instrumentista admite contratar advogados para dar uma solução ao caso. “Para as gravadoras, os discos podem não valer nada, mas para o grupo eles têm valor histórico”, avalia o instrumentista.

Segundo afirma, o interesse pela obra do Uakti é grande, tanto nacional quanto internacionalmente. Não por acaso, conforme revela, o selo Orange Mountain Music, de Philip Glass, lançou Águas da Amazônia no mercado internacional, depois de adquirir o master da Universal, a preço acessível, segundo revelou o músico americano aos integrantes do Uakti.


Perícia
Por determinação judicial, será feita perícia nas matrizes dos três discos de João Gilberto em posse da EMI. Anunciada ontem, a medida, que visa verificar o estado de conservação do material, será realizada quando a multinacional entregar as matrizes ao cantor. Além dos LPs, será analisado o compacto vinil em que João Gilberto canta músicas do filme Orfeu de carnaval. Com essa decisão, a gravadora não pode produzir novas cópias nem comercializar os discos sem autorização de João Gilberto. O artista não quer acordo. Depois de recorrer da decisão, a gravadora ganhou prazo de cinco úteis para devolver as matrizes a ele.



Negociação é difícil

Ailton Magioli

“A premissa aberta com o caso de João Gilberto é muito interessante no que diz respeito ao direito de ir e vir do artista.” A opinião é do cantor Pedro Mariano que, paralelamente à própria carreira, teve oportunidade de vivenciar a realidade do mercado fonográfico brasileiro como filho de Elis Regina e irmão de João Marcelo Bôscoli, ex-dono da gravadora Trama, hoje extinta.

Depois de ver o irmão negociar e conseguir liberar o master do disco João Marcelo & Cia., da Sony Music, com direito a relançamento da Trama, Pedro Mariano tentou fazer o mesmo com o seu primeiro disco, lançado por aquela multinacional, mas não conseguiu. “Invariavelmente, vem com preço de ágio”, constata a cantor, lembrando ainda que o departamento jurídico das grandes gravadoras é orientado pelas matrizes a não venderem os masters.

Depois da Sony Music, da qual ele ainda não conseguiu liberar o disco de estreia, o filho de Elis Regina teve de enfrentar a EMI Music, onde Incondicional, o seu quinto disco solo de carreira, teve lançamento impedido diante do “choque” de uma troca de diretoria. “Na EMI foi uma situação diferente, inédita, na qual só consegui liberar o master cinco anos depois, diante da sensibilidade do então diretor Marcelo Castelo Branco, que me licenciou Incondicional, para eu poder lançá-lo pelo meu próprio selo”, conclui, aliviado, Pedro Mariano.


Uma lei em debate
Ailton Magioli

A legislação brasileira (Lei nº 9.610, de 3 de fevereiro de 1998) abriga, sob a denominação direitos autorais, os direitos de autor propriamente ditos, bem como os direitos conexos. No caso do Brasil, os sucessores do autor da obra perdem os direitos autorais adquiridos 70 anos depois da morte do mesmo, tal como indica o artigo 41 da referida lei.

De 2007 a 2009, o Ministério da Cultura (MinC) promoveu reuniões e seminários para discutir com diversos setores da sociedade a atualização do marco legal que regula os direitos autorais no país. Em 2010, o MinC realizou consulta pública para revisão da atual Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98) com o objetivo de harmonizar os direitos de artistas e criadores com o direito ao acesso à cultura e ao conhecimento, e adaptar as regras às tecnologias digitais.

A então ministra da Cultura Ana de Hollanda, empossada em janeiro de 2011, declarou-se contrária às propostas de flexibilização da lei, defendidas pela gestão anterior, e determinou uma revisão do projeto, que, depois de novas contribuições da sociedade, foi encaminhado ao Congresso Nacional. A posição da ministra gerou grande debate no país sobre a legislação autoral, motivando oposição de setores ligados à cultura digital.

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