Estado de Minas - 11/05/2013
O show de Paul McCartney em Belo
Horizonte deixou um selo de felicidade. Várias gerações se encontraram
para cantar junto aquelas canções. Há um fio, uma trama do inconsciente
coletivo que une tanta gente diferente em torno das mesmas melodias
singelas. As pessoas ficaram felizes.
A música dos Beatles não me
toca além da sensibilidade imediata. Acho o rock mais interessante como
fenômeno social do que estético. Tenho muito mais interesse no senso de
revolta do que na conquista de mercados. Acho o samba e o baião mais
bonitos.
Nada disso, é claro, interessa a ninguém. Mas o show de
Paul McCartney em Belo Horizonte deixou um rastro preocupante que
interessa a todo mundo: os problemas apresentados pelo novo Mineirão.
Não se trata de dividir as pessoas em duas colunas, a dos pessimistas e a
dos otimistas; nem de jogar sobre o fato o cacoete profissional de
procurar problemas onde muitos veem motivo de celebração.
Há,
evidentemente, uma questão de fato: o estádio não ficou pronto, as obras
não têm qualidade, a capacidade de receber o público com eficiência
está comprometida pela falta de competência dos responsáveis pela
operação do serviço.
Entre os problemas detectados estão
questões estruturais da cidade, como o trânsito e o transporte público
deficiente, as quais não podem ser imputadas ao estádio ou aos
organizadores do show. Mas há situações que exprimem a falta de
comprometimento com o dono da arena, que pagou caro por sua reforma: o
povo mineiro.
Vazamentos de esgoto, falta de sinalização,
iluminação precária, acessibilidade inepta para deficientes, entre
outros, são problemas inaceitáveis para um estádio que consumiu milhões
de reais, foi entregue a uma operadora de acordo com contrato expresso
de prestação de serviços e já teve tempo mais que suficiente para
testes, inclusive shows e jogos de futebol pagos a preços exorbitantes. O
público foi cobaia e pagou caro para isso.
Ao ouvir as
explicações, o mais das vezes o que se acompanhou foi um jogo de empurra
de um lado para outro, do governo para a concessionária, desta para a
Secopa, daí até a Fifa, num caminho que procura desviar a atenção das
responsabilidades para confundir o cidadão que frequenta a arena.
Como
equipamento público, ainda que administrado por empresa privada, tudo
que se passa no Mineirão emana da responsabilidade pública. Os
concessionários estão lá para ganhar dinheiro, a prestação de serviços é
só um meio. Quem precisa ditar as regras para que o proveito seja
social é o governo. O que não tem sido feito, é só acompanhar a
sequência de descaminhos.
Trocar os reveses menores apontados
pela qualidade do show é atitude pouco cidadã e, no limite, egoísta e
desmobilizadora. Ao artista todos os méritos cabíveis, aos
administradores públicos e privados responsáveis pelos problemas, a
responsabilização por seus erros.
O rock ensinou várias gerações
a contestar, a sonhar com um mundo melhor, a não se submeter a
autoridade vazia. Vem da música e da postura de alguns artistas a
inspiração para a paz, mesmo enfrentando os senhores da guerra, e o
desejo de amor acima dos ódios e das aparências. O Mineirão com esgoto
vazando, escuro, com deficientes sem mobilidade e falta de informação é a
mais antirrock das arenas.
Mesmo Woodstock, com sua lama, foi
capaz de organizar o caos em nome da liberdade. No Mineirão, nem isso.
Paul cantou suas canções, falou uai e outras palavras simpáticas para o
público. Fez a parte dele. Os organizadores, numa corrente articulada,
cobraram ingressos caros, ofereceram serviços com falhas e se mostraram
ainda incapazes de gerir eficientemente o espaço. E ainda tentaram jogar
a culpa no público.
Não se trata de empurrar para a frente,
utilizando a Copa do Mundo como um álibi adiado do compromisso que
deveria ser para hoje. Não é o estrangeiro que vai sofrer na Copa, é o
cidadão mineiro, que arcou com a conta, que teve uma fruição atrapalhada
do espetáculo para o qual não pagou preço de teste, mas de produto
final.
O correto seria fechar a casa e só abri-la depois de
efetivamente pronta. E não espalhar responsabilidade como cascalho, mas
assumir erros e convocar competência técnica e política para
resolvê-los. Quanto ao show e ao estádio, é preciso que habitem sempre a
mesma sentença. O show foi bom, o esgoto péssimo. O desafio é ser
afirmativo nos dois momentos.
Direita e esquerda
Outro
fato que chamou a atenção esta semana foi a afirmação do presidente do
Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, de que a imprensa brasileira é
“de direita”. O uso do par direita e esquerda, no Brasil, nunca foi
livre de ambiguidades. O curioso é que o magistrado, que curte uma
posição de prestígio junto à imprensa, tenha tocado num ponto nevrálgico
que deixou os jornalões se coçando.
A imprensa brasileira sempre
gostou se ser classificada como liberal. É uma forma polida de aceitar
posições conservadoras em política em nome de sua defesa do livre
mercado na economia. Como direita rima com conservadorismo que tem as
marcas de nosso passado recente de opressão e injustiças sociais, a
autodenominação de liberal parece anistiar tudo em nome da defesa da
liberdade.
A distinção entre esquerda e direita é complexa. Há
questões de ordem ideológica, partidária, política, sociológica,
cultural e econômica que sempre matizam os extremos. Os direitistas são
prestos em dizer que há a extrema direita, da qual divergem; os
esquerdistas apontam na extrema esquerda os radicalismos dos quais
querem se afastar para manter a aceitação das classes médias. Assim, no
limite, só os radicais são de fato esquerdistas e só os reacionários
assumem que são de direita. Os outros preferem ser chamados de
socialistas, se são de esquerda; ou liberais, se estão à direita.
Joaquim
colocou o dedo na ferida, mesmo que sem querer. Quem pretende usar uma
chave filosófica de fácil compreensão pode lançar mão de Norberto
Bobbio, o sábio italiano que definiu esquerda e direita a partir da
premência de dois valores, a liberdade e a igualdade.
Quem
acredita que as pessoas são iguais e defendem ações públicas que
favoreçam a igualdade (econômica, política e social) é de esquerda. Quem
acha que a igualdade deve ficar no fim da estrada e que cabe incentivar
sobretudo a liberdade, até para que as diferenças se anulem, é de
direita. A esquerda precisa ir contra os instintos de divisão; a direita
luta pela emergência da individualidade.
Voltando ao Mineirão, o
futebol é de esquerda, a concessionária é de direita; Paul e o rock são
de esquerda, administração pública de direita. De um lado está a
igualdade (o futebol e a arte), de outro a liberdade em lucrar com esses
eventos (a exploração econômica). Agora, o esgoto que vaza não é de
direita nem de esquerda, é lambança mesmo.
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