sábado, 11 de maio de 2013

Coronel enfrenta comissão e defende atuação na ditadura

folha de são paulo

Ustra diz que não houve assassinatos e que militantes que se opunham ao regime foram mortos 'em combate'
Oficial que comandou centro da repressão na década de 70 diz 'em nome de Deus' que nunca houve estupros
DE BRASÍLIAO oficial que comandou um dos principais centros da repressão política durante a ditadura militar (1964-1985) confrontou ontem integrantes da Comissão Nacional da Verdade e defendeu sua atuação na época, dizendo que sempre agiu conforme a lei.
"Nunca cometi assassinatos, nunca ocultei cadáveres, sempre agi segundo a lei e a ordem", disse o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, 80. "Não vou me entregar. Lutei, lutei e lutei", afirmou, exaltado e batendo com os punhos na mesa.
Ustra chefiou o antigo DOI-Codi de São Paulo de 1970 a 1974, período mais violento da repressão contra opositores do regime. Relatório do Exército citado ontem pela comissão aponta 50 mortes no DOI-Codi de 1970 a 1975.
Foi a primeira vez que a Comissão da Verdade organizou uma audiência pública para ouvir um militar envolvido com a repressão. Ustra obteve na Justiça o direito de ficar calado na sessão, mas não se conteve diante das perguntas dos integrantes da comissão.
Ele disse que cumpria ordens e que era necessário derrotar "organizações terroristas" cujo objetivo era instalar no país "uma ditadura do proletariado, do comunismo".
"Isso está lá escrito [nos programas dos grupos]. Inclusive nas quatro organizações terroristas [a] que a nossa atual presidente da República pertenceu", afirmou Ustra logo após chegar, usando bengala e óculos escuros, e acompanhado do advogado.
Dilma militou em grupos de esquerda que pegaram em armas para combater a ditadura, ficou quase três anos presa na década de 1970 e foi torturada. Foi a presidente que empossou a Comissão da Verdade, no ano passado.
Segundo o coronel, não haveria democracia no país se grupos como o de Dilma não tivessem sido derrotados: "Estou aqui porque os terroristas foram eleitos, dentro da democracia que preservamos". O Planalto não comentou as declarações de Ustra.
Ele silenciou ao ser indagado sobre métodos de tortura usados durante a ditadura e afirmou que só houve mortes em situações de confronto com militantes armados.
"No meu comando ninguém foi morto dentro do DOI. Todos foram mortos em combate. A mentira me revolta. Eram uns anjinhos que estavam lá dentro que foram mortos? Não, senhor. Foram mortos de arma na mão, na rua."
Questionado sobre estupros no DOI-Codi paulista, o coronel disse que nunca ocorreram. "Isso nunca aconteceu. Digo em nome de Deus."
Quando o ex-procurador Claudio Fonteles, membro da Comissão da Verdade, citou o documento que contabiliza as mortes ocorridas no DOI-Codi, o coronel afirmou que a informação já estava no livro que escreveu sobre o período, "A Verdade Sufocada".
Fonteles então sugeriu que o coronel fizesse uma acareação com o vereador paulistano Gilberto Natalini (PV), que diz ter sido torturado por Ustra, foi ouvido pela comissão antes dele e estava na plateia.
Segundo o vereador, o coronel o colocou nu sobre uma poça de água, ligou a ele fios elétricos e ordenou que declamasse poemas. Enquanto declamava, recebia golpes e choques, afirmou Natalini.
"Não faço acareação com ex-terrorista", gritou Ustra. Natalini reagiu, da plateia: "Eu não sou terrorista, viu coronel? Terrorista é o senhor!"
Dois homens se levantaram na plateia para defender Ustra. "Se terrorista pode falar, eu posso falar também" disse um deles a Natalini.
Fonteles gritou para acalmar os ânimos e a sessão logo teve que ser encerrada. Os dois homens cumprimentaram Ustra na saída. Um deles era o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, conhecido crítico da Comissão da Verdade. O outro não quis se identificar.

    ANÁLISE - DITADURA E JUSTIÇA
    Tese de crime permanente não afronta o STF
    Entendimento do Ministério Público nos casos de desaparecimentos é que a ação criminosa ainda não se exauriu
    OSCAR VILHENA VIEIRAHELOISA ESTELLITAESPECIAL PARA A FOLHATramitam na Justiça Federal diversos casos que buscam responsabilizar penalmente violações perpetradas durante o regime militar, apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter decidido pela plena validade da Lei da Anistia. Brilhante Ustra é o principal personagem em algumas dessas iniciativas.
    A estratégia do Ministério Público nessas ações não é confrontar o STF, mas perseguir outra linha de argumentação. Por meio do entendimento de que se tratariam de crimes permanentes, reivindica que, nos casos de desaparecimentos, a ação criminosa que começou no regime militar ainda não se exauriu. Logo, o crime ainda estaria sendo praticado.
    As responsabilidades, dessa forma, poderiam ser definidas, sem com isso afrontar a Lei de Anistia ou a decisão do Supremo.
    As novas ações propostas pelo Ministério Público no país encontram eco na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
    Conforme decidido no caso Gomes Lund y Otros ("Guerrilha do Araguaia") vs. Brasil, a corte abordou a questão do crime permanente para reafirmar a jurisprudência contida na Convenção Interamericana sobre Desaparição Forçada de Pessoas.
    Um dos elementos para essa decisão é a "negativa de reconhecer a detenção e revelar a sorte ou paradeiro da pessoa afetada", que certamente implica permanência, enquanto perdurar a negação.
    Isso, claro, para os fins e à luz dessa normativa internacional.
    Note-se que a conduta de negar o reconhecimento da detenção e a de deixar de revelar o paradeiro da pessoa desaparecida não estão definidas como criminosas no direito penal vigente no Brasil. Isso, porém, não significa que o sequestro, vigente na lei penal brasileira, não possa configurar crime permanente.
    Embora o STF tenha a tendência de buscar reafirmar sua jurisprudência, ainda mais num caso que foi objeto de tanto debate e desgaste para o tribunal, o fato é que há pelo menos três elementos novos a serem levados em consideração.
    O primeiro é a mudança da composição do tribunal. Com o ingresso recente de um ministro e a chegada de um novo nos próximos dias, o balanço pode se alterar.
    Há também um mal-estar, ainda presente, que decorre do conflito entre a decisão do STF e reiteradas decisões da Corte Interamericana.
    Há, por fim, a atuação da Comissão Nacional da Verdade, que pode alterar a percepção da opinião pública em relação àqueles que cometeram crimes contra os direitos humanos. Como aprendemos nos últimos anos, o STF é sintonizado com as demandas da sociedade brasileira.

      Abertura de sessões marca nova forma de trabalho da comissão
      DE BRASÍLIAA sessão aberta de ontem pode iniciar novo capítulo da Comissão Nacional da Verdade, que completa neste mês um ano e chega à metade de seu prazo de funcionamento.
      Segundo Claudio Fonteles, um dos sete integrantes do colegiado, agora serão feitos novos depoimentos públicos. "Primeiro houve uma formatação documental [procura de papéis para subsidiar os depoimentos], agora começam [os depoimentos], se Deus quiser", disse ele.
      Até então, 15 agentes de repressão já tinham sido convocados para falar, dos quais 11 já testemunharam e quatro não compareceram.
      A comissão tem poderes para convocar testemunhas e obrigá-las a depor, mas adotou a prática de convidar as pessoas e só transformar convites em convocações nos casos em que houver recusa.
      Os nomes dos depoentes não foram liberados. A Folha pediu a lista com base na Lei de Acesso à Informação, mas a comissão negou o pedido.
      A publicidade dos depoimentos é uma questão central para membros da comissão, familiares de desaparecidos políticos e entidades que buscam a elucidação dos crimes ocorridos na ditadura.
      O que está em jogo é uma discussão mais profunda sobre os objetivos da comissão.
      Alguns membros dizem acreditar que ela deveria provocar uma forte discussão pública, mesmo com o risco de promover sessões conturbadas como a de ontem --o que, segundo afirmou Fonteles, "faz parte da democracia".
      Ontem, um dos principais receios da comissão em relação a sessões abertas, o de que os militares fossem alvo de protestos, não se concretizou.
      Outros membros, liderados pelo professor Paulo Sérgio Pinheiro, defendem que as atividades do colegiado sejam mais reservadas.
      A ideia é que, se não forem expostos, os militares se sentiriam mais confortáveis para fazer revelações. Na prática, a condução dos trabalhos vem mudando de acordo com o coordenador do grupo.
      A advogada Rosa Cardoso, partidária dos depoimentos públicos, deve ser a próxima a assumir o posto. Dos integrantes da comissão, só participaram da sessão de ontem só Fonteles e o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias.
      A opacidade dos trabalhos do colegiado tem sido um dos principais motivos das críticas que a comissão sofre.
      Além disso, muitos observadores se dizem céticos sobre a possibilidade real de o grupo cumprir a missão prevista em lei e descrever, em detalhes, todas as violações cometidas pela ditadura militar.

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