quarta-feira, 1 de maio de 2013

Caixas resgatam o mundo de Miltinho e a boemia do uísque e dos vestidos decotados

folha de são paulo

CRÍTICA - MÚSICA
RUY CASTROCOLUNISTA DA FOLHAUm ouvinte de hoje terá uma sensação de estranhamento ao ser apresentado a um disco de Miltinho. Que mundo é esse que ele canta, habitado por homens com uma ponta de cinismo e mulheres perigosas e fatais? E que jeito é esse de cantar, em que o artista parece ter domínio absoluto sobre a divisão, o ritmo, o balanço? Adianta-se ou se atrasa em relação ao acompanhamento, mas sempre cai de pé, e quando quer, sobre as sílabas certas e sem perder nenhuma.
A isso chamava-se bossa, e cerca de 150 amostras dessa bossa estão nas duas caixas "Miltinho - Anos 60", pelo selo Discobertas. Contêm 12 CDs, um para cada dos 12 LPs que Miltinho gravou de 1960 a 1965, a uma média de dois por ano: "Um Novo Astro" e "O Diploma do Astro" (1960), "Poema do Adeus" (1961), "Miltinho É Samba", "Poema do Olhar" e "Os Grandes Sucessos de Miltinho" (1962), "Canção do Nosso Amor", "Eu... Miltinho" e "Bossa & Balanço" (1963), "Poema do Fim" e "Miltinho ao Vivo" (1965). Alguns CDs contêm faixas extras, saídas de compactos.
Não é apenas a exumação de um grande material, mas de toda uma época. Traz de volta um cantor de enorme prestígio entre seus pares; sambas e sambas-canções de alto nível; seus compositores (craques tanto no romântico quanto no sincopado); e até o som característico dos discos de então, com orquestração econômica, altamente dançante, e a novidade da alta fidelidade.
Aqui estão todos os sucessos daquela fase de Miltinho --e de cada disco saíam pelo menos três ou quatro: "Mulher de 30" (o primeiro e também o maior), "Menina Moça", "Poema do Adeus", "Poema das Mãos", "Ri" e "Eu e o Rio" (Luiz Antonio), "Recado" (de Djalma Ferreira), "Lamento", "Devaneio", "Murmúrio" e "Cheiro de Saudade" (de Luiz Antonio e Djalma Ferreira), "Palhaçada", "Só Vou de Mulher" e "Meu Nome é Ninguém" (de Haroldo Barbosa e Luiz Reis), "Canção de Amor" (Chocolate e Elano de Paula), muitos mais, e --você achará curioso-- sem qualquer apelo à bossa nova, que corria numa pista paralela. Em seu apogeu, Miltinho não cantava Jobim, nem precisava --seus compositores o disputavam.
Era como se ninguém pudesse segurá-lo. Mas os anos 1970 decretaram o fim das boates, da boemia do uísque e dos vestidos decotados, das melodias que ficavam na cabeça e nas letras que criavam expressões. Este era o mundo de Miltinho --hoje aposentado, no Rio, aos 85-- e de tantos outros que perderam espaço pelo pecado de cantar bem demais.

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