domingo, 9 de dezembro de 2012

A economia no ritmo de Gonzaga - Paulo Henrique Lobato

O desenvolvimento chegou, mas a seca e a miséria continuam. Às vésperas do centenário do Rei do Baião, o EM foi conferir de perto o que mudou no Brasil cantado pelo sanfoneiro 

Paulo Henrique Lobato 
Estado de Minas: 09/12/2012 
Nascido no Dia de Santa Luzia (13 de dezembro), Luizinho herdou do pai, Januário, a paixão pelo fole. A agilidade com que tocava sanfonas de oito baixos, ainda na adolescência, animava os arrasta-pés em sua terra natal, Exu (PE), no sopé da Serra do Araripe. Já adulto, depois de servir o Exército em Belo Horizonte, Juiz de Fora, Ouro Fino e outros quartéis Brasil afora, o seu vozeirão, o vasto repertório e a facilidade com que tirava o som do instrumento musical – agora um fole de 120 baixos – conquistaram uma legião de fãs nos quatro cantos do país. Luizinho, então, passou a ser conhecido como Luiz Gonzaga (1912-1989), o Rei do Baião.

“Quando dei baixa do Exército e saí de Minas Gerais, já estava ficando mineiro”, disse ele certa vez. O ritmo musical criado pelo filho de Januário é um marco na cultura nacional. Suas músicas lideraram paradas de sucesso, tal qual o Xote das meninas. Mas Gonzaga não usou o acordeão apenas para divertir o público. Ele aproveitou o sucesso do baião para revelar, como nenhum outro artista de sua época, um Brasil até então desconhecido de boa parte da população. Em Asa Branca, seu maior sucesso, mostrou o drama da migração forçada pela seca.

Na canção Paulo Afonso, nome da hidrelétrica homônima à cidade baiana, ele ressaltou o desenvolvimento econômico por meio da chegada de energia elétrica a áreas carentes. Em Minas, o mesmo ocorreu, há 50 anos, com a construção da represa de Três Marias, transformando o então povoado de Barreiro Grande na atual cidade, batizada em homenagem à hidrelétrica. Em A marcha da Petrobras, Gonzaga previu que o país seria uma potência mundial – hoje o Brasil é a sexta nação mais rica do planeta.

A lista de músicas que abordam temas econômicos, assim como foi o sucesso do sanfoneiro de Exu, é grande. Em alusão ao centenário de nascimento do Rei do Baião, comemorado na próxima quinta-feira, o Estado de Minas publica, a partir de hoje, a série O Brasil de Gonzaga. A partir dos versos de algumas das canções mais representativas do artista, é traçado um paralelo entre o país de hoje e o cantado por ele. A reportagem percorreu 15 municípios de Pernambuco, da Bahia, do Ceará e do chamado Grande Norte de Minas, que incluem o Vale do Jequitinhonha e o do Mucuri.

É bom frisar que parte do Norte do estado pertenceu, há quase dois séculos, à província da Bahia, o que explica as semelhanças climáticas e socioeconômicas da região com o Nordeste. Em muitas cidades, o progresso sonhado por Gonzaga não é mais utopia. Em Juazeiro do Norte (CE), os arranha-céus mudaram a paisagem local. Em Montes Claros, o distrito industrial atrai grandes empresas. Por outro lado, mesmo com o país batendo recordes na geração de empregos, a seca e outros males cantados à exaustão pelo sanfoneiro ainda ditam o dia a dia de flagelados. Além das matérias diárias, os leitores poderão acompanhar vídeos  e galerias de fotos no site www.em.com.br/brasildegonzaga.

Se traz miséria e lucro 
A estiagem queima a lavoura e derruba o gado, mas garante a renda de quem vende água e ração
 


Paulo Henrique Lobato e Luiz Ribeiro
Enviados especiais
Espinosa (MG), Ouricuri (PE) e Serrita (PE) – O olhar do vaqueiro Heleno Coelho, da fazenda Barro Vermelho, em Serrita, é tão desolador quanto o do gado na fila do matadouro: “Nunca, mas nunca mesmo vi, por Deus, seca como a de 2012. Aqui, tombaram 210 graúdos (bois grandes) e 183 bezerros”. No chamado Grande Norte de Minas, que inclui os vales do Jequitinhonha e do Mucuri, a estiagem desse ano também exterminou muitas cabeças. Em algumas cidades, a produção de leite despencou 60%, enquanto 70% das lavouras de milho, feijão e arroz não vingaram. Pelas contas de técnicos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), esses percentuais somam R$ 220 milhões em prejuízo.
A estiagem de 2012 é a pior dos últimos 30 anos no país. A escassez de chuva atingiu 10 milhões de pessoas em mais de 1,3 mil municípios brasileiros. Mas há quem lucre – e muito – com a indústria da seca. Em Espinosa, no Norte mineiro, o saco de milho de 50 quilos subiu de R$ 20 para R$ 36 (oscilação de 80%) entre janeiro e outubro. Longe de lá, na área rural de Ouricuri, no sertão pernambucano, o frete da carrada d’água – como os moradores se referem ao caminhão-pipa – saltou 44%, em cinco meses, de R$ 180, em junho, para R$ 260 em novembro.

O drama de quem vive no semiárido é o mesmo cantado pelo Rei do Baião em Asa Branca, composta em parceria com Humberto Teixeira, em 1947. De lá para cá, pouca coisa mudou em muitas cidades do Norte de Minas e do Nordeste brasileiro. Tanto que a canção se transformou no hino dos flagelados da seca. O jovem Yuri Nunes, de 13 anos, aprendeu os versos de Asa Branca, destacados no alto desta página, ainda “miudinho”. Diariamente, ele arreia seu jegue, Pé de Pano, para buscar água numa fonte distante, a uma hora de caminhada. “A gente a usa para o banho, para dar de beber à criação, para lavar as louças…”, conta o menino, que sonha se formar em medicina “para ajudar o povo”.

Durante o percurso, na companhia de Pé de Pano, Yuri avista longo trecho em que mandacarus são a única vegetação exuberante. A mesma paisagem tomou conta da fazenda Barro Vermelho, onde Heleno, o vaqueiro, ganha a vida. Ele passa os dias no comando de um trator, que antes era usado para o plantio. Agora, a máquina serve como guindaste: levanta o gado que, por fraqueza, desaba no solo rachado. “Se não for colocado rapidamente em pé, o graúdo se rende à seca. Morre mesmo”, lamenta o homem enquanto socorre um garrote.

O nono e o décimo versos de Asa branca retratam bem o clima de velório na fazenda: “Por farta d'água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão”. “O patrão tenta um empréstimo no banco para comprar ração”, conta Heleno. Já Francisco Ferreira Lopes, outro fazendeiro da região, preferiu negociar 15 vacas, com “deságio” de 25%, para levantar rapidamente o dinheiro da ração. “Cada res valia R$ 1,2 mil. Vendi cada uma por R$ 900. Custeio R$ 4 mil mensais com ração, contudo, o leite que retiro não me rende R$ 2 mil”. Pelas contas de sindicatos de Pernambuco, a produção de leite na região foi afetada em 50%. 
Mário Barbosa de Souza, fazendeiro em Espinosa, no Norte de Minas, perdeu 36 de suas 90 cabeças de gado. Ele recorre à religião para buscar forças: “É preciso ter fé em Deus”. Para piorar, o preço da ração – tanto no Nordeste brasileiro quanto no Norte mineiro – subiu mais de dois dígitos recentemente. “Há três meses, comprava o saco de farelos, de 50 quilos, por R$ 45. Agora sai por R$ 55”, conta João Alves de Lima, de 73, morador da área rural de Flores (PE). Ele precisou vender 10 vacas, ao custo de R$ 800 cada, para alimentar a outra parte do rebanho. “Havia comprado cada uma por R$ 1,5 mil”, lamentou. 

LUCRO A estiagem também tem o lado do lucro. Em Espinosa, onde a seca durou 10 meses, o comerciante Celso Baleeiro revelou que o preço do caroço de algodão, insumo para alimentação do gado, subiu 120% em 10 meses, de R$ 0,50, no início do ano, para R$ 1,10 no fim de outubro. O preço de outra ração, a torta de algodão, passou R$ 28 para R$ 50 (aumento de 78%). “Nunca pensei em ganhar mais dinheiro com a seca.”

Em Salinas, cidade do Norte de Minas conhecida pela variedade de cachaça, o produtor Elton Santiago, fabricante da marca Canarinha, admite que, apesar de produzir menos em razão da seca, o lucro subiu. “Com a diminuição da oferta, houve aumento do preço da cachaça, da ordem de 25%. A gente perde de um lado e ganha do outro”, comemorou Eilton.
Em Ouricuri, o preço da carrada com 7 mil litros de água subiu 44%. O valor só não é maior porque o Exército e prefeituras socorrem os flagelados com caminhões-pipa. Mas a água, muitas vezes, acaba antes da próxima visita do veículo do poder público. Quando isso ocorre – e quase sempre ocorre –, Damiana Alves de Macedo, de 30, precisa recorrer a vizinhos. “Minha renda fixa é o Bolsa Família. Os R$ 180 que recebo não dão para comprar uma carrada”. O dono dos caminhões, por outro lado, não têm do que reclamar e também lucram com a seca.


Osente

Velho Chico tem sede

Juazeiro (BA) e Petrolina (PE) – A seca desse ano não poupou o São Francisco, chamado de Rio da Integração Nacional por cortar Minas, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Os timoneiros que comandam os barcos-lotação (foto) na travessia Juazeiro/Petrolina precisaram redobrar a atenção, pois o nível do leito recuou e expôs bancos de areia. “A viagem fica perigosa”, disse Nilton Bispo Rocha, de 34 anos, acrescentando que o lado econômico da navegação também foi prejudicado, pois, como a área do porto nas duas cidades foi reduzida em razão do novo nível do rio, alguns barcos suspenderam as viagens. As duas cidades foram tema da música Petrolina/Juazeiro, consagrada na voz de Gonzaga: “Petrolina, Juazeiro, Juazeiro, Petrolina / Todas as duas eu acho uma coisa linda / Eu gosto de Juazeiro, e adoro Petrolina”. (PHL)


A volta dos retirantes 
Desenvolvimento, emprego e renda maior hoje trazem de volta quem deixou a região para prosperar
 


Paulo Henrique Lobato e Luiz Ribeiro
Enviados especiais

Marta Vieira
Mamonas (MG), Lagoa Grande (PE) e Jardim (CE) – Os movimentos da asa branca, pássaro pouco menor que um pombo, são acompanhados de perto pelo sertanejo, pois a chegada e a partida da ave de uma região significam o início e o fim do período chuvoso. No chamado Grande Norte de Minas e no Nordeste brasileiro, os versos estampados no alto dessa página ainda fazem parte da realidade de muitas famílias que deixam o semiárido em busca de emprego, principalmente no Sudeste. Por outro lado, devido ao aumento do poder aquisitivo do brasileiro, uma parcela grande de ex-refugiados da seca já faz o caminho de volta. Melhor: muitos que foram para o Sudeste e agora retornam à terra natal usam suas economias para abrir negócio próprio, gerando emprego e renda na região.

O retorno do pródigo, no entanto, ainda não aconteceu na casa de Ana Rodrigues, de 47 anos, moradora de Mamonas, a 300 quilômetros de Montes Claros. Em busca de emprego, cinco de seus seis filhos deixaram a cidade rumo a São Paulo. Ela espera, ansiosa, pelo dia em que eles vão voltar para ficar. “Saíram para o mundo para não passar fome”, lamenta. Dois filhos de Jucineide Justino, de 45, também se foram. Trocaram Lagoa Grande, no sertão de Pernambuco, por Petrolina, onde o emprego é farto graças à renda da área irrigada pelo leito do São Francisco. “Sei que um dia o mesmo deve acontecer com meus três filhos menores”.

“A população que migra é aquela em idade produtiva – a mais jovem. Isso causa redução da capacidade de produção das comunidades”, alerta o economista Geraldo Antônio Reis, da Unimontes, para quem o êxodo é intensificado “à medida que os municípios não são capazes de criar oportunidades de empregos e, ao mesmo tempo, não oferecem bons serviços de saúde, saneamento básico e educação”. Para se ter ideia, de 1960 a 1980, mais de 1,3 milhão de nordestinos deixaram a terra natal. Para eles, como foi para os filho s de dona Ana, a meca em questão é São Paulo.

Hoje, embora muitas famílias do Norte de Minas e do Nordeste ainda partam em busca de um futuro melhor, a migração é menor do que o da época em que o Rei do Baião gravou Asa Branca. Isso se deve a vários fatores, como investimentos privados e públicos e a expansão de programas sociais, entre eles o Bolsa Família. É preciso voltar a enfatizar que muitos do que se mandaram para as capitais do Sudeste, décadas atrás, agrora voltam para casa, depois de prosperar, para empreender. O professor Alisson Flávio Barbieri, do departamento de Demografia da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, avalia que a redução das desigualdades sociais e econômicas, até então flagrantes ante o Sudeste e o Sul brasileiros, abriu o caminho para o crescimento da economia e a migração de retorno.

As cidades médias brasileiras também começaram a atrair investimentos e a indústria foi obrigada a buscar novas áreas para se instalar, longe das regiões metropolitanas. “A diferença entre os padrões migratórios da realidade que Gonzaga vivenciou e os de hoje é que, nos anos 60, éramos um Brasil extremamente mais desigual”, reforçou Barbieri.

A redução da desigualdade social no Nordeste foi fundamental para que Jailson Sales, de 46, fizesse o caminho de volta para casa, em Exu, quase 30 anos depois de ter partido para São Paulo, onde exerceu várias funções da indústria. A última foi no setor de confecções. “Em 2010, percebi que o Nordeste havia crescido, que as pessoas passaram a ter maior renda. Decidi voltar.” Ele veio na companhia de um amigo, Luiz Antônio Rodrigues, de 61, que trocou Guarulhos pela terra de Gonzaga. Montaram uma confecção com 20 funcionários.

Um deles é Elda Pereira, de 41, que também havia migrado para São Paulo, na década de 1980, e decidiu voltar para Exu. Quando chegou no Sudeste, ela trabalhou como empregada doméstica. Anos depois, resolveu se qualificar e conseguiu o diploma de costureira. Resultado: foi contratada pela fábrica de Jailson e Luiz Antônio assim que voltou para o semiárido. “Trouxe meu marido, natural de São Paulo, comigo. Ele trabalha como mototaxista. A ideia é não sair mais daqui”, planeja. Os fluxos migratórios tendem a se estender levados pela capacidade que o Nordeste tiver para manter taxas altas de crescimento econômico, mas o fator climático influencia essa direção, alerta Alisson Barbieri.


Osente

Lucro com músicas

Ouricuri (PE) – Luiz Gonzaga comprou sua primeira sanfona, em Ouricuri, por 120 mil réis, na loja de Seu Adolfo. Era um fole de oito baixos. O ponto de venda não existe mais, porém, na cidade, há duas lojas que negociam instrumentos musicais. Na Eletrobela, uma sanfona de oito baixos sai por R$ 780. Já o acordeão de 120 baixos custa R$ 3.265,00. Jackson Alan Lacerda (foto) é vendedor no local: “A loja foi aberta, há cinco anos, num espaço próximo daqui. Crescemos tanto que há dois anos precisamos vir para esse imóvel, que é bem maior. Em média, negociamos dois foles por mês. O campeão de vendas da loja é o violão, cujos preços vão de R$ 180 a R$ 490”. (PHL) 


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