domingo, 9 de dezembro de 2012

Memórias que viram histórias - "Um frio de matar passarinho"


ARQUIVO ABERTO

Roma, 1976
Folha de São Paulo FRANCISCO ROBERTO PAPATERRA LIMONGI MARIUTTIA biblioteca que o muito conhecido ensaísta e pouco conhecido poeta Alexandre Eulalio Pimenta da Cunha (1932-1988) montou ao longo da vida encontra-se na seção Coleções Especiais da Biblioteca Central Cesar Lattes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Alexandre Eulalio formava, ao lado de Luciana Stegagno-Picchio e do autor de "Janela do Caos", Murilo Mendes, a tríade dos grandes professores de literatura brasileira na Itália na virada dos anos 1960-70.
Livros de Murilo, autografados, constam entre os 12 mil volumes que pertenceram a Alexandre Eulalio, inclusive a "Antologia Poética", publicada em Lisboa, pela Livraria Morais, em 1964.
O exemplar traz, logo em seguida ao autógrafo e à dedicatória, nas páginas brancas iniciais, rascunhos do poema transcrito na seção "Imaginação" (pág. 8), em português e em italiano.
AO MEU CARO
ALEXANDRE EULÁLIO,
COM UM AFETUOSO ABRAÇO,
MUITOS 'AUGURI'
E ALGUNS ERROS DE TIPOGRA-
FIA,
MM
ROMA, 23.1.1966
Essa é a dedicatória que se manchou, escrita em caixa alta, em letra de forma, provavelmente com caneta-tinteiro. Na última página branca do volume consta, em letras idênticas à dedicatória, a seguinte anotação:
EXEMPLAR CORRIGIDO POR
MIM.
ROMA, NOV. 1971
Essa data significa que o livro retornou a Murilo Mendes, antes de acompanhar Alexandre Eulalio na viagem de volta ao Brasil, pouco tempo depois. E significa também que o autor de "Tempo Espanhol" conheceu esse "eulaliograma".
Registrem-se duas coisas: a) o vaivém do livro o torna portador não apenas dessa pequena obra-prima de Alexandre Eulalio, como também de um muito confiável ponto de partida para uma edição crítica da obra de Murilo Mendes; b) o banal e mínimo estímulo, a escrita borrada pela neve, no lugar de madeleine umedecida pelo chá, dá sinal para os neurônios entrarem em sinapse --fiat lux!
Fazer que a gênese de um poema seja seu próprio tema dá mostras do espírito criador de Alexandre Eulalio, da disposição para fazer entrar em pauta a voz poética do autor, que se tornaria célebre com o livro "A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars" (1978).
Trata-se de um dos "eulaliogramas" compostos para homenagear o autor dos "murilogramas"; os outros são "LT a Murilo Mendes", um poema longo, escrito em maio de 1971 por ocasião do setenta anos do poeta, também em português e italiano, e a direção e o roteiro do documentário "Murilo Mendes: A Poesia em Pânico", iniciado em 1971 e finalizado em 1977.
Carlos Augusto Calil, que trabalhou em muitos projetos com Alexandre Eulalio, organizou o legado do amigo e tornou-se seu editor, deve publicar em breve esse outro poema e o documentário, em vias de restauração na Cinemateca Brasileira.
Ah... em Brescia e em Siusi, cidades do norte da Itália, em dezembro, faz um frio de matar passarinho, daí a neve no início desta história.

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