domingo, 9 de dezembro de 2012

Oscar foi-se, mas ficou


MEMÓRIA
Oscar foi-se, mas ficou
A arquitetura nascida na prancheta de um carioca sem esquadros
Folha de São Paulo
CARLOS A. C. LEMOSRESUMO Responsável pelo escritório de Oscar Niemeyer em São Paulo entre 1951 e 1957, quando começa a construção de Brasília, Carlos A. C. Lemos rememora os anos de convívio com o mestre, morto na última quarta-feira, e comenta aspectos de sua personalidade e de sua obra, a seu ver só comparável à de Aleijadinho.
Oscar Niemeyer (1907-2012) foi o primeiro sucessor de Aleijadinho (1738?-1814) no quadro da arquitetura brasileira. Entre o arquiteto mineiro, autor da obra-prima universal que é a igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, e o carioca, autor da igreja do mesmo orago na Pampulha, medeiam cem anos, um século sem nenhum outro arquiteto produzindo obras que realmente representassem o nosso processo cultural.
Cabe aqui a distinção entre "arquitetura no Brasil" e "arquitetura do Brasil". Nesta última qualificação é que se insere a produção de Niemeyer. Essa distinção ultimamente tem parecido fora de propósito a muitos críticos, dada a tendência à universalização das soluções arquitetônicas, já que passamos a viver numa aldeia global. Na verdade, não é bem assim, e neste espaço não caberia argumentação que justificasse plenamente vínculos culturais na produção de projetos de arquitetura em geral.
Mesmo se encarássemos somente as obras de autor, procurando bem, acharíamos atrás delas fios de meada que nos levariam à sua sociedade de origem, à sua região, ao seu país e até mesmo à sua cultura continental. Na realidade, o autor isolado não passa da tão mencionada ponta do iceberg. Abaixo da linha-d'água estão submersas gerações e gerações definindo programas e meios de expressão. As experiências do passado é que suportam o gelo que brilha ao sol.
A pergunta é esta: se Oscar Niemeyer fosse japonês, russo, italiano ou americano do norte, teria condições de projetar a igreja da Pampulha?
A partir da nossa independência política, em 1822, passamos, arquitetonicamente falando, a ser colonizados pela França, cujo neoclássico ensejou entre nós outros neos, todos desvinculados da tradição nacional. Até mesmo o xenófobo neocolonial, o estilo que não houve, assumiu feições ora lusitanas recém-importadas, ora inventadas a partir da observação delirante de um arquiteto de gênio como Victor Dubugras, sem nunca expressar brasilidade.
Inclusive o apelo a Le Corbusier (1887-1965) para que viesse orientar o projeto do novo edifício do Ministério da Educação, em 1935, estava ainda perfeitamente ajustado à subserviência, ao gosto e à experiência de fora. Ainda éramos colonos sem voo próprio. Oscar Niemeyer fez parte da equipe que trabalhou sob a supervisão do arquiteto franco-suíço e aprendeu muito praticando uma arquitetura, até então, conhecida só em livros e revistas.
A teoria assimilada, no entanto, não impediu a procura de outros critérios no emprego do concreto armado, logo percebido como um material eminentemente plástico. Aí o grande mérito do nosso arquiteto: ir além das regras consagradas pelo racionalismo modernista, no qual estava incluído o funcionalismo de Le Corbusier.
CURVAS Oscar anteviu que o concreto armado permitia ir além das colunas prismáticas, das vigas retas, das lajes planas e do ângulo reto. Imaginou espaços gerados por curvas transladadas.
Muito mais tarde, na década de 70, dizia o nosso arquiteto: "Não é a linha reta que me atrai. Dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher bonita. De curvas é feito todo o Universo. O Universo curvo de Einstein".
E sempre foi fiel às curvas, que pela primeira vez experimentou na igrejinha de Belo Horizonte. Novo espaço, novo partido arquitetônico satisfazendo, no entanto, o velho programa colonial brasileiro. Usando de novo o azulejo decorado em painéis de Portinari (1903-62) e Paulo Werneck (1907-87). Plantando, ao lado do templo, a velha torre sineira, agora com outro desenho. Desde Aleijadinho, o Brasil não era manifestado por um arquiteto alheio ao neocolonial.
Oscar foi-se, mas ficou. Não só vai permanecer em nossa memória coletiva como também estará presente em nosso dia a dia através de suas obras espalhadas pelo Brasil afora. Sobretudo Brasília estará garantindo sua constância nas apreciações críticas sobre arquitetura nacional. Não só no nível erudito, mas é aceito também no gosto popular; o desenho das colunas do Palácio da Alvorada está sempre a percorrer o país todo na decoração ingênua dos caminhões de carga trafegando pelas estradas de norte a sul. Oscar não só foi, como continuará sendo uma das poucas unanimidades pátrias.
Contudo, quem conviveu com o homem Oscar Niemeyer também guardará nas recordações seu jeito manso de falar e agir no cotidiano, desprendido das coisas materiais, dono de pequenos gestos a marcar seu caráter magnânimo.
Foi a única pessoa que vimos distraidamente rasgar dinheiro. Certa vez, conversando com amigos à volta da mesa de reuniões, enrolou um cheque há poucos minutos deixado pelo professor Edmundo Vasconcelos como parte dos honorários relativos ao projeto do hospital em construção no caminho do aeroporto de Congonhas. Não só enrolou apertado como torceu o canudo, formando uma espiral que esticava e encolhia puxando-a pelas pontas.
Ninguém percebeu que seu brinquedo era um valioso cheque, logo levado pelas mãos ao atender o telefone na mesa da secretária. No fim do expediente, foi dado o alarme: onde estava o cheque do cliente, que naquela tarde iria viajar para a Suécia? Depois de muita procura, já com o arquiteto ausente, o tal cheque foi achado em frangalhos, na cesta do lixo ao pé da escrivaninha de dona Berta. É claro que o banco não aceitou o papel danificado, e somente um mês depois o escritório foi ressarcido, com a volta do cliente.
COTIDIANO No cotidiano de escritório onde trabalhávamos naqueles anos 50, volta e meia presenciávamos suas distrações como a do cheque; seu comportamento parecia ser algo displicente naquela ambiência aparentemente sem hierarquias, mas, entre piadas, sabia exigir, e assim era, na verdade, respeitado ombreando-se aos funcionários. Sempre delicado, às vezes fazendo inesperados agrados.
Um dia, por exemplo, deu-nos sua gravata, que havíamos elogiado momentos antes, quando dirigíamo-nos ao hotel da avenida Ipiranga, dizendo ser aquele presente de nosso agrado e, por isso, ele estava contente com a oferta.
Última recordação que nos ocorre neste momento triste: quando levamos a ele, no Rio, para ser assinado, um documento exigido pela consultoria jurídica da CNI, transferindo-me a incumbência da fiscalização arquitetônica das obras do edifício Copan, já que estava totalmente absorvido pelos projetos de Brasília.
Na hora da despedida, no elevador, assim, meio acanhado, deu-nos um autorretrato original de Le Corbusier, dizendo: "Carlinhos, este desenho ganhei há anos do meu amigo como recordação de nosso convívio aqui no Rio. Leve ele agora como lembrança minha". Retrato que guardo hoje zelosamente.
Não foi só a arquitetura de Oscar que ficou entre nós. Seu espírito, em todas as acepções, impregnou para sempre as vidas daqueles que tiveram a sorte de conhecê-lo.
Oscar Niemeyer, o arquiteto "do Brasil", contudo, não deixou de fazer a sua arquitetura "no mundo", pois sua obra também atingiu a universalidade do mesmo modo que o purismo germânico de Mies van der Rohe (1886-1969) emocionou em São Paulo os então jovens arquitetos Plínio Croce, Roberto Aflalo e Salvador Cândia, do mesmo modo que o organicista e telúrico Frank Lloyd Wright (1867-1959) encantou Jacob Ruchti e Miguel Forte.
São as influências perceptíveis na "aldeia global" do mundo pequeno de hoje. Daí não nos causar espanto a verificação de estarem Oscar e seus discípulos, com suas intervenções, levando à Europa, África e Ásia a arquitetura um dia nascida na prancheta de um jovem carioca destituído de esquadros, mas guardando o Brasil e, sobretudo, o seu povo no coração.
Foi a única pessoa que vimos distraidamente rasgar dinheiro. Não só enrolou apertado o cheque como torceu o canudo, formando uma espiral que esticava e encolhia, puxando-a
Oscar foi-se, mas ficou. Tal qual Aleijadinho, não só vai permanecer em nossa memória coletiva como também estará presente em nosso dia a dia através de suas obras
Não foi só a arquitetura de Oscar que ficou entre nós. Seu espírito, em todas as acepções, impregnou para sempre as vidas daqueles que tiveram a sorte de conhecê-lo

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