sábado, 30 de março de 2013

A busca da liberdade - Sérgio Rodrigo Reis

Cineasta Philipe Ratton prepara filme sobre a vida da tia, Dodora Barcelos, militante da luta contra a ditadura civil-militar, que foi presa, torturada e se suicidou na Alemanha 


Sérgio Rodrigo Reis

Estado de Minas: 30/03/2013 

O ano é 1969. A então estudante de medicina da UFMG, Maria Auxiliadora Lara Barcellos, a Dodora ou Dorinha, como também era conhecida, entra para o movimento estudantil em Belo Horizonte. Perseguida pelos militares, vai para o Rio de Janeiro e, denunciada por vizinhos, é presa e violentamente torturada por meses, até que é banida do país, em 1971. As marcas da repressão nunca mais lhe abandonaram o espírito. Atordoada, já na Alemanha, onde passou a viver depois de conquistar o primeiro lugar num concurso para estrangeiros, não suportou o peso do próprio passado e optou por uma solução drástica: atirou-se na frente do metrô, pondo fim à própria vida. A tragédia marcou a história de sua família.

O cineasta Philipe Ratton não conheceu sua tia. Mesmo assim, desde criança presenciou a tristeza da avó com a situação, assim como da mãe, do pai e dos demais parentes. A história que deixou tantas marcas sempre o inquietou, até que decidiu contá-la. Os últimos anos foram de pesquisa e preparação do roteiro do filme Perdão meu capitão, mas eu sou gente, inspirado na trajetória da tia, que é conhecida entre os pares de luta, como a própria presidente Dilma Rousseff – que a citou no primeiro discurso como candidata à Presidência: “Dodora, você está aqui no meu coração” –, mas ainda desconhecida das novas gerações. Seu objetivo é conseguiu recursos para levar adiante o projeto e realizar um longa-metragem que recupere a trajetória de Dodora Barcelos, para além do aspecto dramático.

“A história é fascinante e precisava ser contada”, diz Philipe, que é autor da ideia bem antes de os filmes sobre o período militar ganharem as salas de cinema. A intenção é ambientar a trama com as passagens ligadas à repressão, mas ir além disso. “Minha questão não é política. Não colocarei isso em primeiro plano. A tentativa é realizar um filme onírico, claro, entrecortado pelas situações de violência que são parte da vida dela”, adianta ele, que se baseou num texto escrito pela própria tia, batizado por ela de “Perdão meu capitão, eu sou gente”.

Nele, a estudante narra as marcas deixadas pela tortura em sua alma e as inquietações que a perseguiriam dali em diante. “São fantasmas que sempre estiveram presentes na família pelo sofrimento de minha mãe e avô. Quando era menor, escutava falar dos feitos dela e, para mim, era quase uma heroína. Com o tempo fui entendendo melhor e percebendo a ilusão que aqueles estudantes tinham de tentar mudar as coisas daquela forma.” Além de Dodora, a família tem outros exemplos de pessoas dedicadas à causa da liberdade.

Destino cruzado


O cineasta Helvécio Ratton, tio de Philipe, sabe o que significa a repressão. Como Dorinha, ele integrava o mesmo grupo de esquerda, o Comando de Libertação Nacional (Colina), que depois se transformou na Vanguarda Armada Revolucionário Palmares (VAR Palmares). “Além de militarmos juntos, ela ainda era minha concunhada. Cruzávamos muito. Quando tivemos que sair de Minas, nos reencontramos no Rio de Janeiro várias vezes, já como clandestinos”, lembra o cineasta.

Pouco depois que a estudante foi presa Ratton conseguiu sair do país, tendo se refugiado no Chile. Seis meses depois, quando Dorinha se tornou um dos 70 presos políticos trocados e libertados depois do sequestro do embaixador suíço, ela se refugiou também no Chile. “Recebi-a lá. Quando a encontrei, achei-a bastante agitada. Acho que perdeu a paz. Parecia sempre nervosa e ríspida. Acho que nunca mais recuperou a tranquilidade”, recorda Ratton.

A história de repressão da estudante guarda semelhanças com a situação que inspirou Helvécio Ratton a realizar, em 2006, o filme Batismo de sangue. “Vejo bastante semelhança entre a história de Tito, personagem principal de meu filme, com a dela. Assim como Dodora, ele foi trocado e libertado quando ocorreu o sequestro do mesmo embaixador. Chegou junto com ela ao Chile. São tramas paralelas. Como ela, se sentiu tão atordoado pela situação até decidir acabar com a própria vida. Ele na França e ela em Berlim. Nunca conseguiram ter de volta a paz de espírito.” Ao contrário dos colegas de militância, Helvécio Ratton não passou por aquele tipo de tortura. “Quando caíram presos, consegui ficar na clandestinidade. Fui preso em condições mais brandas, pois quando ocorreu já não tinha mais nada a falar que os interessava. Ao contrário do que ocorreu com eles”, recorda.

Registro necessário

Orçado em R$ 500 mil, o filme Perdão meu capitão, mas eu sou gente deverá ter locações, além do Brasil, no Chile e na Alemanha. A expectativa do diretor é, com a nova determinação de conteúdos na TV paga, finalmente conquistar a verba necessária. Sua família vê com expectativa a possibilidade de ter a trajetória da estudante recontada.

“Foi uma das pessoas mais inteligentes e bonitas que conheci. Infelizmente, não fez tratamento para processar o trauma e entrou numa depressão grande. Fomos visitá-la em fevereiro, a deixamos internada em Berlim e ela foi melhorando. Em 1º de junho recebemos um telefonema com a notícia de que havia se matado. Morreu com 33 anos”, lembra Luiz Fernando Ratton, pai de Philipe. Essa situação de violência extrema, com repercussão internacional na época, deixou marcas que não podem ser esquecidas.

Tempo sem sorrisos

“Pisei no calcanhar do monstro e ele virou sua pata sobre mim, cego e incontrolável. Fui uma das vítimas inumeráveis do machão crioulo, monstro verde-amarelo de pés imensos de barro. Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, um grito no escuro.”

 Texto de Dodora Barcelos

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