Cineasta Philipe Ratton prepara filme
sobre a vida da tia, Dodora Barcelos, militante da luta contra a
ditadura civil-militar, que foi presa, torturada e se suicidou na
Alemanha
Sérgio Rodrigo Reis
Estado de Minas: 30/03/2013
O
ano é 1969. A então estudante de medicina da UFMG, Maria Auxiliadora
Lara Barcellos, a Dodora ou Dorinha, como também era conhecida, entra
para o movimento estudantil em Belo Horizonte. Perseguida pelos
militares, vai para o Rio de Janeiro e, denunciada por vizinhos, é presa
e violentamente torturada por meses, até que é banida do país, em 1971.
As marcas da repressão nunca mais lhe abandonaram o espírito.
Atordoada, já na Alemanha, onde passou a viver depois de conquistar o
primeiro lugar num concurso para estrangeiros, não suportou o peso do
próprio passado e optou por uma solução drástica: atirou-se na frente do
metrô, pondo fim à própria vida. A tragédia marcou a história de sua
família.
O cineasta Philipe Ratton não conheceu sua tia. Mesmo
assim, desde criança presenciou a tristeza da avó com a situação, assim
como da mãe, do pai e dos demais parentes. A história que deixou tantas
marcas sempre o inquietou, até que decidiu contá-la. Os últimos anos
foram de pesquisa e preparação do roteiro do filme Perdão meu capitão,
mas eu sou gente, inspirado na trajetória da tia, que é conhecida entre
os pares de luta, como a própria presidente Dilma Rousseff – que a citou
no primeiro discurso como candidata à Presidência: “Dodora, você está
aqui no meu coração” –, mas ainda desconhecida das novas gerações. Seu
objetivo é conseguiu recursos para levar adiante o projeto e realizar um
longa-metragem que recupere a trajetória de Dodora Barcelos, para além
do aspecto dramático.
“A história é fascinante e precisava ser
contada”, diz Philipe, que é autor da ideia bem antes de os filmes sobre
o período militar ganharem as salas de cinema. A intenção é ambientar a
trama com as passagens ligadas à repressão, mas ir além disso. “Minha
questão não é política. Não colocarei isso em primeiro plano. A
tentativa é realizar um filme onírico, claro, entrecortado pelas
situações de violência que são parte da vida dela”, adianta ele, que se
baseou num texto escrito pela própria tia, batizado por ela de “Perdão
meu capitão, eu sou gente”.
Nele, a estudante narra as marcas
deixadas pela tortura em sua alma e as inquietações que a perseguiriam
dali em diante. “São fantasmas que sempre estiveram presentes na família
pelo sofrimento de minha mãe e avô. Quando era menor, escutava falar
dos feitos dela e, para mim, era quase uma heroína. Com o tempo fui
entendendo melhor e percebendo a ilusão que aqueles estudantes tinham de
tentar mudar as coisas daquela forma.” Além de Dodora, a família tem
outros exemplos de pessoas dedicadas à causa da liberdade.
Destino cruzado
O
cineasta Helvécio Ratton, tio de Philipe, sabe o que significa a
repressão. Como Dorinha, ele integrava o mesmo grupo de esquerda, o
Comando de Libertação Nacional (Colina), que depois se transformou na
Vanguarda Armada Revolucionário Palmares (VAR Palmares). “Além de
militarmos juntos, ela ainda era minha concunhada. Cruzávamos muito.
Quando tivemos que sair de Minas, nos reencontramos no Rio de Janeiro
várias vezes, já como clandestinos”, lembra o cineasta.
Pouco
depois que a estudante foi presa Ratton conseguiu sair do país, tendo se
refugiado no Chile. Seis meses depois, quando Dorinha se tornou um dos
70 presos políticos trocados e libertados depois do sequestro do
embaixador suíço, ela se refugiou também no Chile. “Recebi-a lá. Quando a
encontrei, achei-a bastante agitada. Acho que perdeu a paz. Parecia
sempre nervosa e ríspida. Acho que nunca mais recuperou a
tranquilidade”, recorda Ratton.
A história de repressão da
estudante guarda semelhanças com a situação que inspirou Helvécio Ratton
a realizar, em 2006, o filme Batismo de sangue. “Vejo bastante
semelhança entre a história de Tito, personagem principal de meu filme,
com a dela. Assim como Dodora, ele foi trocado e libertado quando
ocorreu o sequestro do mesmo embaixador. Chegou junto com ela ao Chile.
São tramas paralelas. Como ela, se sentiu tão atordoado pela situação
até decidir acabar com a própria vida. Ele na França e ela em Berlim.
Nunca conseguiram ter de volta a paz de espírito.” Ao contrário dos
colegas de militância, Helvécio Ratton não passou por aquele tipo de
tortura. “Quando caíram presos, consegui ficar na clandestinidade. Fui
preso em condições mais brandas, pois quando ocorreu já não tinha mais
nada a falar que os interessava. Ao contrário do que ocorreu com eles”,
recorda.
Registro necessário
Orçado em
R$ 500 mil, o filme Perdão meu capitão, mas eu sou gente deverá ter
locações, além do Brasil, no Chile e na Alemanha. A expectativa do
diretor é, com a nova determinação de conteúdos na TV paga, finalmente
conquistar a verba necessária. Sua família vê com expectativa a
possibilidade de ter a trajetória da estudante recontada.
“Foi
uma das pessoas mais inteligentes e bonitas que conheci. Infelizmente,
não fez tratamento para processar o trauma e entrou numa depressão
grande. Fomos visitá-la em fevereiro, a deixamos internada em Berlim e
ela foi melhorando. Em 1º de junho recebemos um telefonema com a notícia
de que havia se matado. Morreu com 33 anos”, lembra Luiz Fernando
Ratton, pai de Philipe. Essa situação de violência extrema, com
repercussão internacional na época, deixou marcas que não podem ser
esquecidas.
Tempo sem sorrisos
“Pisei no calcanhar do monstro e ele virou
sua pata sobre mim, cego e incontrolável. Fui uma das vítimas
inumeráveis do machão crioulo, monstro verde-amarelo de pés imensos de
barro. Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me
despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos.
Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, um
grito no escuro.”
Texto de Dodora Barcelos
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