Em sua autobiografia, Um gosto amargo de
bala, Vera Gertel recorda a militância política e artística de sua
geração. Atriz destaca papel dos artistas na resistência à ditadura
civil-militar
Ana Clara Brant
Estado de Minas: 30/03/2013
Um fato curioso marcou a vida da
militante, atriz e jornalista Vera Gertel assim que ela veio ao mundo.
Ganhou o nome de Anéli, uma homenagem da mãe, Raquel, à Aliança Nacional
Libertadora (ANL), frente de oposição à ditadura Vargas. Mas só foi
registrada dois anos depois e mesmo assim como Vera, apesar de alguns
familiares a chamarem carinhosamente por Néli. “Minha mãe era tão
comunista e tão prestista que colocou esse nome em mim e ainda batizou o
meu irmão mais novo de Luiz Carlos. Mas eu sou Vera”, assegura.
Casos
como esses estão no primeiro livro de Vera Gertel, a autobiografia Um
gosto amargo de bala, que ela acaba de lançar pela Civilização
Brasileira. Em quase 280 páginas, que vão do início dos anos 1940 até
1974, a autora proporciona uma viagem ao passado, intercalando momentos
da sua vida com a própria história do Brasil. Aliás, em várias passagens
é difícil separar um e outro, pois Vera viveu de perto e esteve
presente nos fatos mais importantes da política e da sociedade
brasileiras. “Planejava este livro há um tempo e ele não saía da minha
cabeça. Queria contar um pouco dessa vida incomum que tive, de
presenciar tanta coisa marcante seja na política, nas artes ou na
cultura. Sou filha de dois militantes comunistas, meu pai foi preso;
acompanhei de perto duas ditaduras, a de Vargas e a militar. Tenho muita
coisa para contar”, ressalta.
A moça, filha de Noé e de Raquel
Gertel, queria cursar medicina, mas, como achou muito difícil passar no
vestibular, decidiu abraçar a biologia. Não concluiu o curso e quando
viu estava no palco fazendo parte do Teatro de Arena – um marco da
dramaturgia nacional.
Conviveu com gente como Gianfrancesco
Guarnieri, Augusto Boal, Zé Renato e Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha,
com quem se casou e teve seu único filho, o roteirista Vinícius Vianna –
a quem ela dedica o livro –, que é um dos colaboradores de Walther
Negrão, na novela Flor do Caribe. “Optei pela biologia porque na época
era muito difícil fazer medicina. Mas a vida me atropelou, acabei
trancando matrícula e virei atriz de teatro sem a menor noção do que
isso significava como carreira”, recorda.
Entre outras peças,
Vera brilhou na primeira e antológica montagem de Eles não usam
black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1958, no Teatro de Arena, no
Rio. Também participou de filmes e novelas como O acusador, com Jardel
Filho, primeira trama de Janete Clair produzida para a televisão e que
foi exibida na extinta TV Tupi, em 1964.
Sobrevivência
Assim
como os pais, Vera Gertel foi parar no jornalismo. Não por vontade
própria, mas pelo acaso e pela necessidade, como relata no livro:
“Desempregada por períodos maiores que os anteriores, já que o teatro
passava a ser cada vez mais perseguido pela censura, comecei a fazer
trabalhos de tradução e a procurar empregos. Fui estagiária no jornal
Última Hora, na seção Internacional, durante a reforma empreendida pelo
editor Jânio de Freitas. Apesar de ser filha de jornalistas, nunca me
passou pela cabeça adotar a profissão. Aconteceu. E tão despreparada
estava que, quando o secretário do jornal, Mário Rolla, baixou uma
primeira página diagramada em minha mesa e disse ‘três de nove’, fiquei
perplexa.”
“Sou jornalista do tempo em que não precisava de
faculdade. Na hora que você tem que sobreviver, acaba indo para o
jornalismo. Não foi uma escolha consentida”, declara.
Vera conta
que sentiu uma espécie de alívio quando terminou de escrever suas
memórias e que o que mais lamenta é não conviver mais com personalidades
admiráveis como Joaquim Câmara Ferreira e Carlos Marighella, homens que
entregaram suas vidas pelos ideais. “Sinto muita saudade também dos
meus pais, não só pelo aspecto afetivo, mas porque eram figuras com quem
podia discutir de tudo: política, cinema, teatro, literatura. Sinto
falta desse tipo de conversa e hoje tenho raras pessoas amigas com as
quais consigo debater esses assuntos”, desabafa Vera Gertel, que, além
de Oduvaldo Vianna Filho, foi casada com o compositor Carlos Lyra e com
jornalista Jânio de Freitas.
A atriz e militante diz que tem
recebido comentários elogiosos e surpreendentes de colegas e amigos
sobre seu livro e confessa que ficou satisfeita com o resultado. Um
gosto amargo de bala pode, quem sabe, indicar um caminho pela
literatura, apesar de ela ainda não ter refletido sobre isso. “Se
continuar a escrever, acho que não seria pela ficção. Sou jornalista e
tenho o vício da profissão, que é o de contar a coisa como realmente
foi. Gosto muito de biografias e considero uma maneira interessante de
aprender a história, principalmente quando é escrita por jornalistas.
Mas não sei ainda dizer o que vai acontecer”, declara, aberta para os
desafios da vida.
Trecho
“As reuniões da
base teatral estavam ficando cada vez mais inflamadas. Eu defendendo o
caminho armado para a derrubada da ditadura, Vianna, do outro lado, pela
linha pacífica. Estávamos discutindo teses do VI Congresso do Partido
Comunista e teríamos de mandar um delegado ao encontro. O nível das
discussões foi sendo elevado a tal ponto que alguns nos acusaram de
extrapolar para briga de ex-marido e ex-mulher. Não creio. Pelo menos
para mim, aquilo era um caso encerrado. De qualquer modo, confesso ser
de uma teimosia sem par quando discuto. A base estava dividida, e acabei
eleita delegada ao Congresso.”
Um gosto amargo de bala
. De Vera Gertel
. Civilização Brasileira, 272 páginas, R$ 29,90
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