Um chocolate para Audrey
Sair do ônibus sem precisar sonhar, ser levada pelo playboy napolitano em um conversível: como resistir?
O motorista do ônibus e um carroceiro que interrompeu o caminho jogam a responsabilidade um no outro. Ouve-se uma voz: "A culpa não é minha, é do Gino" (parece que Gino é o nome de um burrico).
Dentro do ônibus, resignação. Naquele lugar onde os penhascos mergulham no Mediterrâneo, e vilarejos despontam em ângulos impossíveis, não existe espaço para a ansiedade. Ninguém se levanta, nenhum passageiro vai brigar com o motorista. Simplesmente esperam a bagunça ser resolvida para seguir viagem.
Audrey está no ônibus. Está mas não está. As vicissitudes da vida provinciana não significam nada para ela. De lencinho preto amarrado no pescoço, Audrey gosta de sonhar. Leva no colo uma bolsa, que ela abre, e vemos lá dentro um tablete de chocolate.
Chocolate! Combustível dos sonhos da doce morena. Ela pisca os olhos, imagina-se em um lugar muito melhor do que dentro de um ônibus em uma vila italiana, quem sabe uma região do planeta onde a vida realmente aconteça.
É como a personagem Holly Golightly, do filme "Bonequinha de Luxo": a provinciana que deixou para trás a família e o tédio do sul dos Estados Unidos, e se mandou para Nova York em busca de glamour.
A Audrey presa no transporte coletivo italiano, frescor e beleza exalando de cada poro, é a atriz Audrey Hepburn (1929-1993). A mesma que interpretou Holly Golightly no cinema.
Voltamos ao ônibus, onde, inspirada pelo chocolate, Audrey sonha com uma vida mais empolgante. Mas espere: e se ela não precisasse da imaginação para sair dali? E se fosse, de verdade, levada a outro lugar?
A cena tem agora trilha musical. Começa "Moon River", o tema de "Bonequinha de Luxo", na voz da própria Audrey. Mas não essa Audrey sonhadora do ônibus. É a Audrey do filme, ou melhor, Holly Golightly, atormentada pelo passado caipira, tentando conquistar uma metrópole que sabe não lhe pertencer.
De volta à pracinha, onde motorista e carroceiro ainda discutem. Um bonitão, pinta de playboy napolitano, guiando um conversível, para ao lado da janela de Audrey.
Os olhares se encontram. Com um movimento discreto do braço, o "bello" a convida para o lugar vago ao lado dele.
Sair daquele ônibus sem precisar sonhar, ser levada dali, sem prazo ou destino. Como resistir?
Audrey joga a cabeça para trás, pede licença ao passageiro do lado. Dá uns poucos passos, desce dois degraus -pronto, está na rua. Tão leve, tão delicada, ela não anda, flutua. Segura as laterais do vestido branco esvoaçante de bolinhas pretas, dá a volta pela frente do ônibus. Sorrindo, em um gesto tão doce quanto furtivo, rouba o boné do condutor.
Perdeu, playboy do conversível. Audrey não vai ficar a seu lado. Ela põe o boné do motorista na cabeça do galã, e senta-se no banco de trás.
Conformado, o moreno namorador engata a primeira e segue pela estrada sinuosa, agora como motorista particular. Audrey abre de novo a bolsa, tira o chocolate, come, enfim, uma fileira.
Milagrosamente, o vento não embaraça seus cabelos negros presos em rabo de cavalo. Porque Audrey, essa Audrey impossivelmente linda, não existe.
É um avatar hiperrealista, criado para um comercial inglês de chocolate. Um prodígio de técnica, ao mesmo tempo assustador e fascinante. Veja: bit.ly/WgmM8g.
O filme publicitário é um tributo à juventude e aos desejos que a simbolizam. Mas é também o relato de uma felicidade inalcançável.
Como se uma paisagem tão deslumbrante, uma jovem tão desesperadamente bela, um encontro tão fortuito, tudo isso só pudesse existir em um roteiro fictício, com a protagonista criada por um programa de animação em 3D.
Ainda restam alguns segundos do comercial. A canção se aproxima de um dos versos mais primorosos da história da música popular ("two drifters off to see the world", nem me atrevo a traduzir).
Audrey, o avatar de Audrey, recosta-se no banco, suspira, fecha os olhos. O destino não importa mais, muito menos o Apolo de província que pilota o carrão.
Ela só queria chocolate.
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