Angelo Oswaldo
Estado de Minas: 30/03/2013
“O vos omnes qui
transitis per viam, attendite et videte si est dolor sic ut dolor meus”,
canta a mulher o seu dorido lamento, no meio da noite silente, ao
mostrar aos que passam a verdadeira imagem de Cristo, recolhida no alvo
sudário que ela de novo enrola, enquanto as carpideiras entoam o
plangente responso – “eu, eu, eu, Domine” (ai, ai, ai, Senhor). A
procissão do enterro sobe e desce as ladeiras de Minas, na noite
profunda da sexta-feira santa.
“Ó todos vós que transitais pela rua, parai e vede se há dor como a minha dor”, vem dizer o pintor Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), ao apresentar o rosto de Cristo por ele tantas vezes estampado na tela/sudário da paixão da pintura.
A visão das cidades históricas de Minas, repletas de igrejas e signos barrocos da fé católica, estimulou o artista a experimentar os temas sacros.
Verônica, personagem mítica que se faz guardiã do vero ícone de Cristo, despertou no pintor o desejo de reproduzir-lhe o mistério iconográfico. Guignard se entrega à face dilacerada de Cristo com o fervor da arte que arrebata suas estremecidas emoções.
“ ... a luz que doura
O seu cabelo, é sangue: linha a linha,
É sangue o rosto: e a barba, que entre loura
E negra está, clarões de sangue tinha.”
Diz o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, em versos de seu livro Setenário das dores de Nossa Senhora.
Mestre Guignard compôs trágicas “verônicas”, e foi chamado de “o pintor dos Cristos sangrentos”. A figura martirizada de São Sebastião também dele mereceu persistente atenção. Marcadas pelo ritmo expressionista do pincel guignardiano, essas imagens têm o pathos da plástica pictural e do sacrifício divino, mas quase sempre se enredam num clima de delicada inocência, dentro da atmosfera onírica em que ele costumava ambientar seus motivos preferidos.
Sofredor e lírico
Nas pinturas do Cristo, não há a perplexidade estarrecedora de uma vanitas – composições em que aparece a caveira pintada pelos autores barrocos como símbolo da vanidade da vida. Não transparece o desejo de irradiar terror, angústia ou piedade. Enternecido pelo Cristo sofredor, quem o retrata é um homem lírico. Ele se expõe repleto do lirismo de um Manuel Bandeira quando este evoca a poesia da infância nas ruas do Recife antigo.
É o Bandeira de “O anjo da guarda”: “Quando minha irmã morreu/ (Devia ter sido assim)/ Um anjo moreno, violento e bom,/ – brasileiro/ Veio ficar ao pé de mim./ O meu anjo da guarda sorriu/ E voltou para junto do Senhor”.
Está ali, em cada imagem, a poesia de um sofredor solitário e sereno, o professor Guignard que, por meio da pintura, vive amores impossíveis e sonhos jamais realizados. Poderoso senhor dos pincéis, Guignard sublima a dor do cordeiro de Deus na liturgia da cor, e as suas próprias dores se desvanecem nos jogos prazerosos da luz.
Os Cristos guignardianos transitam na procissão das coleções públicas e particulares. Na semana santa, celebram a paixão do pintor e a sua ressurreição para a eternidade da arte.
* Angelo Oswaldo é jornalista.
“Ó todos vós que transitais pela rua, parai e vede se há dor como a minha dor”, vem dizer o pintor Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), ao apresentar o rosto de Cristo por ele tantas vezes estampado na tela/sudário da paixão da pintura.
A visão das cidades históricas de Minas, repletas de igrejas e signos barrocos da fé católica, estimulou o artista a experimentar os temas sacros.
Verônica, personagem mítica que se faz guardiã do vero ícone de Cristo, despertou no pintor o desejo de reproduzir-lhe o mistério iconográfico. Guignard se entrega à face dilacerada de Cristo com o fervor da arte que arrebata suas estremecidas emoções.
“ ... a luz que doura
O seu cabelo, é sangue: linha a linha,
É sangue o rosto: e a barba, que entre loura
E negra está, clarões de sangue tinha.”
Diz o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, em versos de seu livro Setenário das dores de Nossa Senhora.
Mestre Guignard compôs trágicas “verônicas”, e foi chamado de “o pintor dos Cristos sangrentos”. A figura martirizada de São Sebastião também dele mereceu persistente atenção. Marcadas pelo ritmo expressionista do pincel guignardiano, essas imagens têm o pathos da plástica pictural e do sacrifício divino, mas quase sempre se enredam num clima de delicada inocência, dentro da atmosfera onírica em que ele costumava ambientar seus motivos preferidos.
Sofredor e lírico
Nas pinturas do Cristo, não há a perplexidade estarrecedora de uma vanitas – composições em que aparece a caveira pintada pelos autores barrocos como símbolo da vanidade da vida. Não transparece o desejo de irradiar terror, angústia ou piedade. Enternecido pelo Cristo sofredor, quem o retrata é um homem lírico. Ele se expõe repleto do lirismo de um Manuel Bandeira quando este evoca a poesia da infância nas ruas do Recife antigo.
É o Bandeira de “O anjo da guarda”: “Quando minha irmã morreu/ (Devia ter sido assim)/ Um anjo moreno, violento e bom,/ – brasileiro/ Veio ficar ao pé de mim./ O meu anjo da guarda sorriu/ E voltou para junto do Senhor”.
Está ali, em cada imagem, a poesia de um sofredor solitário e sereno, o professor Guignard que, por meio da pintura, vive amores impossíveis e sonhos jamais realizados. Poderoso senhor dos pincéis, Guignard sublima a dor do cordeiro de Deus na liturgia da cor, e as suas próprias dores se desvanecem nos jogos prazerosos da luz.
Os Cristos guignardianos transitam na procissão das coleções públicas e particulares. Na semana santa, celebram a paixão do pintor e a sua ressurreição para a eternidade da arte.
* Angelo Oswaldo é jornalista.
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