Estado de Minas - 30/03/2013
Dentro
de dois dias, o golpe de 64, que interrompeu um ciclo de 18 anos da
democracia brasileira, completa 49 anos. No auge do período autoritário,
acreditava-se que a volta das eleições para presidente da República e
governadores dos estados levaria o país à democracia novamente. No
entanto, um quarto de século após o fim do regime de exceção, ainda há
resquícios de autoritarismo, como mostra Edson Teles, professor da
Universidade Federal de São Paulo e co-organizador do livro O que resta
da ditadura? Para ele, mais importante do que saber o que resta da
ditadura é definir qual democracia temos hoje e qual queremos no futuro
próximo.
No dia 1º de abril de 1964, um golpe de Estado promovido
pelas Forças Armadas e com o apoio civil, especialmente de setores
empresariais, latifundiários e da Igreja, interrompeu um período de
construção democrática de 18 anos, que vinha desde a Assembleia
Constituinte de 1946. Durante pouco mais de 20 anos, generais do
Exército fizeram rodízio no cargo de presidente da República e
implantaram um regime autoritário nos moldes das ditaduras
latino-americanas nascidas nas décadas de 1960 e 1970.
O regime
militar governou via decretos secretos ou atos institucionais de
autorização da violência de Estado contra os opositores. Foi o período
tenebroso das prisões, torturas, mortes e desaparecimentos. Porém, não
foi só na montagem de um aparelho repressivo de Estado que se destacou o
regime. A ditadura soube criar uma estrutura autoritária, com certo
verniz legalista, a qual permaneceu, sob vários aspectos, até na volta à
democracia.
Hoje, podemos nos perguntar (ou talvez devemos)
sobre o que resta da ditadura. Passados cerca de 30 anos do fim do
regime autoritário, poderíamos dizer que a transição para a democracia
continua em andamento? Quando assistimos à ocorrência de violência
institucional, desrespeito aos direitos do cidadão ou aos direitos
humanos, forte desigualdade social, pouca participação popular nas
decisões, teríamos um sinal de que estruturas herdadas do período
ditatorial permanecem? Ou um modelo de democracia no qual o povo,
elemento fundamental para as decisões políticas, encontra-se com
presença reduzida nas instâncias de governo?
Muito se diz sobre
as ditaduras argentina e chilena terem sido as mais violentas do
continente devido ao número de mortos e desaparecidos – cerca de 30 mil e
5 mil, respectivamente. No Brasil, a cifra atinge pouco menos de 500
casos. Por outro lado, enquanto no Brasil a ditadura processou mais de 7
mil opositores, na Argentina este numero não passou de 700. Houve, no
Brasil, uma grande ditadura, mas que soube construir uma judicialização
da repressão. Contudo, se medirmos uma ditadura pelas marcas e
estruturas por ela deixadas para o presente, poderíamos dizer que a
ditadura brasileira foi uma das mais violentas.
Ela imprimiu nas
relações institucionais e políticas nacionais uma indefinição entre o
democrático e o autoritário, na qual o legal e o ilícito, o legítimo e o
injusto, o justo e o abuso de poder, a segurança e a violência são
lançados em uma zona cinzenta de indistinção. A promessa democrática de
se desfazer das injustiças do passado e de produzir os remédios
necessários para o tratamento do sofrimento social autorizam tanto as
ações sociais de diminuição da precariedade da vida social, quanto
legitimam o acionamento de medidas emergenciais ou violentas, sem
respeito a um modo partilhado de lidar com a vida social e política.
Há
no país um modo de conjugar lei e anomia que fica mais evidente quando
analisamos como foi encaminhada a transição entre o regime ditatorial e a
democracia. O Brasil é o único pais do continente que não puniu nem
mesmo um agente do Estado responsável pelas graves violações de direitos
durante a ditadura. Na Argentina, por exemplo, já são mais de 200
condenados, muitos deles oficiais de alta patente. As Forças Armadas
brasileiras não assumiram, até hoje, a responsabilidade institucional
sobre os mais de 20 anos obscuros da história do país. É comum, até
hoje, ouvirmos militares da ativa e da reserva fazendo o elogio do
período de repressão, como se não fosse possível termos democracia se
antes não houvesse ocorrido a perseguição, a tortura e o assassinato de
brasileiros que não pensavam como as elites do país.
Práticas de
sucessivos governos democráticos, tais como a impunidade gerada pela Lei
de Anistia; a gestão do Estado com medidas provisórias; o trato do
sofrimento social através de ações administrativas sem sua inclusão na
lei (por exemplo, o Bolsa Família); a tortura nas instituições de
segurança e punição; a presença do Exército nas periferias de grandes
capitais; o desrespeito às normas de uso público de verbas para a Copa
do Mundo; um dos maiores índices de homicídios por parte da polícia; e a
ausência e o silenciar dos movimentos sociais nas decisões do Estado
são exemplos da presença de algo autoritário no Estado de direito.
Inaugurou-se
uma democracia social cuja herança das injustiças e carências do
passado (sofremos ditaduras, escravidão, extermínio de índios, problemas
crônicos nas áreas de saúde, educação, alimentação etc.) justifica a
adoção de medidas necessárias e terapêuticas. Sob a promessa de desfazer
os erros cometidos (sempre em outro governo, outro Estado, outra
história) e diminuir o sofrimento social, autoriza-se o acionamento de
medidas emergenciais que dispensam os procedimentos democráticos. Tais
medidas não são ilegais e se encontram dentro do ordenamento. Contudo,
deveriam ser autorizadas somente em situações especiais e de alta
necessidade. Como se utiliza delas na atualidade é uma espécie de ato
ilícito autorizado pelo lícito.
Uma lógica política que se
evidencia neste processo e caracteriza-se como algo comum às democracias
contemporâneas são os cálculos de governo. Segundo esta lógica, há toda
uma série de relações de forças em conflito que não podem ser reguladas
pelo direito. O ordenamento jurídico inclui em suas letras o que pode
ser observado em sua regularidade e repetição. Mas há algo que escapa às
séries regulares: a ação política singular e inovadora. Não podemos
prever o resultado das relações de forças – mobilizações de opinião
pública, vulneráveis aos acontecimentos aleatórios e modificáveis pelas
constantes alterações na capacidade de luta dos envolvidos. E,
justamente, o modo com que o Estado de direito lida com o não regular é
através de um cálculo de governo.
Na lógica da governabilidade
democrática, realiza-se a conta do que é provável, compondo com as
forças mais poderosas e fixando uma média considerada possível, além da
qual praticamente nada será permitido. No cálculo da política de Estado
os restos são computados, mas possuem um valor diferenciado, ora sendo
importantes para dar vazão às ações reivindicatórias, ora sendo
manipulados para autorizar a medida autoritária com a qual o governo
imporá suas decisões. A política do possível cria um consenso cujo
resultado é o bloqueio dos restos resultantes do cálculo, notadamente os
movimentos de resistência às políticas de Estado.
Diante da
questão inicial deste texto, sobre o que resta da ditadura, talvez seja
possível realizar uma leve inversão em sua lógica, mas com radical
implicação na leitura da democracia. Perguntar sobre a herança da
ditadura pode indicar que as estruturas autoritárias presentes na
democracia se configurariam como uma falha no sistema. Como se ainda não
tivéssemos conseguido, com 25 anos de Estado de direito, reformar as
instituições e, especialmente, determinada cultura social e política.
Contudo, se pensarmos em alguns elementos simbólicos da democracia, nos
parecerá que não constataremos somente a herança ditatorial, mas a
decisão política de reafirmar parte deste legado como integrante da
realidade brasileira atual.
Falamos, por exemplo, da Lei de
Anistia de 1979, a qual é lida desde então como ato de não punição dos
envolvidos com a violência do Estado ditatorial. No ano de sua criação,
ainda vivíamos sob o regime militar, com um Congresso cassado pouco
tempo antes, senadores biônicos – que eram indicados pelos generais, sem
participarem das eleições – e com bombas explodindo em bancas que
vendiam jornais de oposição. Apesar da leitura de impunidade da lei
advir deste contexto repressivo, o Supremo Tribunal Federal, em 2010,
instado a pronunciar-se sobre a validade da lei para torturadores,
manteve a leitura da não punição aos responsáveis por torturas e mortes
sob o argumento de que a lei de 1979 seria o produto de um grande acordo
nacional.
Vemos, neste caso emblemático, que aquilo que
permaneceu não é mais, ou é somente, uma herança que agora se configura
como o produto de um processo ruminado pelo Estado de direito e com
decisão final do órgão máximo do ordenamento jurídico do país. Se
visitarmos outros aspectos da herança ditatorial, veremos como parte
deste legado vem se renovando nas estruturas da atual democracia. A
tortura, institucionalizada na ditadura, é praticada largamente no atual
sistema penitenciário e nas delegacias. A violência policial vem
crescendo sistematicamente, ampliando seu alvo, que, no presente, não é
somente o militante, mas também o jovem de periferia, o favelado, o
negro, etc.
Parece haver a consolidação de uma democracia na qual
a assimilação do resto da ditadura produziu um resto da democracia.
Refiro-me àqueles para os quais certo aspecto autoritário é inequívoco e
muito concreto, resultado do que sobrou dos cálculos de governo da vida
democrática. Não se trata aqui de estabelecer uma indistinção entre
democracia e ditadura. Ao contrário, sob a superfície do discurso de uma
democracia consolidada e exemplar, encontramos formas de agir cuja
astúcia é serem autoritárias e parecerem democráticas. Há algo
bloqueando a efetivação de uma ação política transformadora que nos leve
a reformular a série de questões inaugurais deste texto. A pergunta
hoje nos parece nem tanto saber o que resta da ditadura, mas qual
democracia temos atualmente e qual queremos no futuro próximo.
Edson
Teles é professor de filosofia política na Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp). Organizou, junto com Vladimir Safatle, o livro O que
resta da ditadura? (Boitempo, 2010)
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