sábado, 30 de março de 2013

O que é possível fazer (Edgar Morin)- João Paulo‏

Estado de Minas - 30/03/2013

O pensador Edgar Morin já passou dos 90 mas não descansa. Sábio além das fronteiras do conhecimento dividido em escaninhos pelas universidades, ele é um exemplo raro de homem capaz de trazer inovações para o pensamento sociológico, político, antropológico e filosófico. Autor de dezenas de livros, Morin criou com a noção de complexidade um novo modo de se aproximar dos problemas da civilização, sem ficar preso em dogmas nem desprezar qualquer forma de conhecimento, religião e arte.

Em sua trajetória, elaborou o diagnóstico de nosso tempo, atento para os conflitos étnicos, para a instabilidade política, para a degradação do meio ambiente, para a repetição de padrões viciados de pensamento e ação política. Esse cenário, pouco promissor, se escora em alguns dos descaminhos que se tornaram rota na modernidade, como a mundialização e a universalização do padrão de desenvolvimento ocidental.
Em outras palavras, o que por muito tempo foi tomado como solução (o desenvolvimento industrial e a sociedade de consumo) hoje é o responsável direto pela abrangência do problema. Por meio de seus livros e de sua incansável disposição em percorrer o mundo em busca de diálogo com o novo (o Brasil é um país que faz parte de sua vida), Edgar Morin preparou o caminho para sua mais recente obra, A via para o futuro da humanidade (Editora Bertrand Brasil), que acaba de chegar às livrarias.

O que ele traz de novo é a coragem de apontar caminhos, de estabelecer um plano de ação política para enfrentar os impasses do nosso tempo. Para Morin, não nos restam muitas opções: ou o abismo ou a metamorfose. O que parece ser uma solução fácil, na verdade, envolve uma transformação profunda na maneira de compreender o mundo e se organizar para as mudanças necessárias. Não bastam alternativas ideológicas, do tipo esquerda e direita, mas um comprometimento mais amplo, que abranja desde as formas de pensamento filosófico até as questões do cotidiano.

A via é um livro sobre o futuro da humanidade. Mais que isso, sobre a possibilidade de futuro. Como parte do método que vem fundamentando a reflexão do autor, a primeira indicação pode ser sintetizada na expressão latina sparsa colligo, que significa “reúno o disperso”. Para um cenário em que todos os problemas parecem se juntar para apontar um horizonte de impossibilidade, é preciso criar alternativas que sejam igualmente universais e holísticas. Morin, como Drummond, sabe que vivemos um tempo partido, habitado por homens partidos. Seu empenho é resgatar a totalidade.

Quatro caminhos


Para pavimentar sua via, o pensador elege quatro reformas que devem se unir para firmar o propósito de verdadeira transformação do destino humano no planeta: as reformas políticas, econômicas, educativas e da vida. São aspectos interligados da mesma experiência; quando uma delas avança, permite que a outra ganhe fôlego. São reformas “correlativas, interativas e interdependentes”. Uma não existe sem a outra e, por isso, são tratadas separadamente apenas para melhor explicitação de seus programas.

Ao tratar do primeiro aspecto, as políticas da humanidade, Edgar Morin propõe uma alteração nos padrões convencionais. Para uma crise singular, uma nova concepção da política. Entre os aspectos destacados por ele estão o que chama de “política da humanidade”, que em vez de se dirigir aos Estados nacionais tem como objeto a comunidade de destino da espécie humana. A Terra-Pátria, em sua unicidade, se torna uma grande pátria comum.

A política da humanidade se situaria no polo inverso das soluções voltadas para o desenvolvimento, mesmo o chamado desenvolvimento sustentável. Há muito o que aprender, por exemplo, com culturas que operam com outras noções de saber, inclusive as religiosas. A política da humanidade, nas palavras do filósofo, deverá promover uma simbiose entre o que há de melhor na civilização ocidental e as contribuições de outras civilizações, portadoras de riquezas que vêm sendo desprezadas.

A nova política tem como desafios a questão das diferentes culturas e povos, a recuperação da qualidade de vida, o desenvolvimento de uma consciência ecológica planetária, que envolva temas candentes como a energia, a habitação, a produção de alimentos, os transportes, a relação campo/cidade e a água. Além da dimensão programática, trata-se ainda de reinventar formas de convivência democrática e de combate à desigualdade e à pobreza.

A segunda reforma apontada por Morin abrange o pensamento e a educação. O filósofo defende que, para fazer frente aos graves problemas que ameaçam a sobrevivência do planeta e da humanidade, é preciso apostar no novo homem, formando cidadãos policompetentes e multidimensionais. Não se trata apenas de cobrar mais investimentos para a educação, mas de transformar radicalmente nossa concepção acerca do saber e do pensamento. A nova educação precisa superar os impasses da tecnociência (como a excessiva especialização) e avançar rumo a uma democracia cognitiva. Um novo saber que seja também para todos.

Da saúde à morte

Depois da política e da educação, a terceira reforma se volta para diferentes campos da vida social. A começar pela medicina e pela saúde. Morin identifica a crise dos paradigmas sanitários tradicionais, fundados na tecnologia, com suas insuficiências e ambivalências: perda do humanismo, do contato familiar, foco no físico com desprestígio da dimensão psicológica, excesso de estatísticas, ênfase na especialização, monopólios da indústria farmacêutica e enfraquecimento da relação médico- paciente. Um modelo inviável, cada vez mais caro e menos resolutivo.

Além da saúde, a reforma da sociedade propõe nova organização das cidades, com humanização e governança mais inclusiva, com reforço do poder local e das demandas sociais. As reformas abrangeriam ainda novas relações entre campo e cidade, com reforma agrária, valorização de sistemas de produção de alta qualidade ambiental e preservação da biodiversidade. Por fim, no âmbito das reformas sociais, Morin propõe um equilíbrio das relações de consumo e de trabalho.

A quarta reforma, que o pensador define como “reforma da vida”, mira o lado menos tangível e, por isso mesmo, mais profundo da humanidade. Se a civilização está em crise, o homem que habita o planeta e o faz respirar padece dos mesmos sintomas, fazendo de seu microcosmos um símile do inferno que se tornou o mundo. Morin aposta na revolução dos sentimentos, na despoluição da inveja e do ódio, na oxigenação da ética, no império da fraternidade e do perdão. É claro que, mais uma vez, o repertório para construir esse patrimônio não há de vir da ciência e do desenvolvimento. O pensador apela a todas as formas de pensamento, entre elas a religião, o mito e a arte.

Para alcançar esse patamar, em síntese com as reformas anteriores, o homem precisa atentar para dimensões que estão passando batido, apostando na possibilidade de uma outra forma de vida. Quem, em meio à depressão que define nosso tempo, nunca pensou em simplificar a vida e dar valor ao que de fato nos alegra e completa? É esse sentimento latente de revolta que o sociólogo propõe resgatar e tornar real: uma outra vida é possível.

Dialético, Morin termina seu livro tratando do envelhecimento e da morte. Mais que isso: propondo que esses estágios sejam vividos não como derrota inevitável (os velhos se tornaram um incômodo e deixaram de ser respeitados; a morte se tornou um colapso tecnológico de um corpo já sem vida). Avalia projetos que buscam uma velhice feliz, analisa o intento de dissimulação da morte que tomou conta da sociedade da competição e do consumo, propõe a recuperação de rituais laicos e religiosos que evoquem a alegria e os percalços da vida.

A via não é um livro teórico, embora recheado da melhor teoria política, sociológica e filosófica; não é um programa partidário, ainda que estabeleça vias coletivas de reformas necessárias para evitar o abismo que nos mira cada vez mais de perto. Morin reuniu o disperso. O que, em si, já é uma lição e tanto.


 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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