Patrimônio Cultural da Humanidade,
via-sacra foi construída por Aleijadinho e outros artistas em Congonhas a
partir de promessa do português Feliciano Mendes a Bom Jesus de
Matosinhos
Sérgio Rodrigo Reis
Estado de Minas: 30/03/2013
Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814), maior artista brasileiro de todos os
tempos, deixou no alto de um dos morros da cidade histórica de
Congonhas, a 89 quilômetros de Belo Horizonte, sua obra-prima: os Passos
da Paixão de Cristo. Por três anos, entre 1º de agosto de 1796 e 31 de
dezembro de 1799, ele executou, ao lado dos ajudantes de seu ateliê, as
66 figuras em cedro instaladas em grupos: ceia, horto, prisão,
flagelação, coroação de espinhos, cruz às costas e crucificação. À
magistral missão de criar o conjunto de esculturas somaram-se outros
dois talentos da época: os pintores Manuel da Costa Ataíde e Francisco
Xavier Carneiro. O primeiro cuidou das policromias das imagens da ceia,
flagelação e crucificação e o outro do restante das peças, trabalho só
finalizado em 1819.
Muitos mistérios envolvem a criação dos
passos, assim como a real participação dos ajudantes de Aleijadinho na
empreitada e ainda a biografia do mestre escultor. Porém, nada
conseguiu, quase dois séculos após a morte do artista, ofuscar a
grandiosidade daquele feito, considerado pela Organização das Nações
Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como Patrimônio
Cultural da Humanidade. O vocábulo “passo”, denominação para as estações
da via-sacra, traz duplo sentido, como explica a pesquisadora Myriam
Andrade Ribeiro de Oliveira, no livro Passos da Paixão – O Aleijadinho
(Edições Alumbramento). É algo que serve para designar o episódio do
passio do Cristo e ainda o deslocamento do peregrino entre esses marcos.
A devoção à via-sacra foi propagada no Brasil, sobretudo, pela
atuação dos frades franciscanos, que possuíam, como explica a
pesquisadora, o privilégio da guarda dos lugares santos em Jerusalém,
onde também foram os criadores dos primeiros roteiros organizados para
uso dos peregrinos. “Em seus conventos espalhados por todo o mundo quase
sempre figura uma via-sacra a céu aberto, sendo particularmente
notável, no Brasil, a série de Passos em painéis de azulejos do Convento
de Santo Antônio, de João Pessoa”, exemplifica. Como os conventos de
ordem religiosa foram proibidos em Minas, coube à irmandade do Senhor
dos Passos das paróquias disseminar a devoção. Assim surgiram, nas
antigas vilas coloniais mineiras, as capelinhas dos Passos, como em Ouro
Preto e Tiradentes. Em Congonhas aconteceu diferente.
Coube ao
português Feliciano Mendes, acometido por uma enfermidade incurável à
época, realizar uma promessa a Bom Jesus de Matosinhos: caso se curasse,
fundaria uma irmandade em Congonhas semelhante à do Norte de Portugal.
Ele havia desbravado anos antes aquelas terras na Região Central de
Minas e descoberto ouro. A doença veio junto com seu enriquecimento.
Felizmente sua promessa surtiu efeito positivo. Como forma de gratidão,
ele dedicou o resto da vida a fundar, naquele vilarejo, não só a
irmandade a Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo, como cuidou
pessoalmente de angariar recursos para construção de uma igreja
monumental no pico de uma das colinas mais altas do lugar, além dos
Passos da Paixão com as 66 figuras em cedro e dos 12 profetas em
pedra-sabão. Para a missão chamou Aleijadinho, o maior artista daqueles
tempos. Desde 1780, aquela irmandade passou a organizar e promover a
romaria e os jubileus atraindo, sempre em setembro, milhares de
peregrinos.
As principais fontes para o estudo dos passos estão
no lugar de origem, o arquivo do Santuário e Irmandade do Senhor Bom
Jesus de Matosinhos de Congonhas. Os documentos foram transcritos em
inúmeras publicações e citam como marco inicial o ano de 1796, quando
começa a aparecer o nome de Aleijadinho nos registros. Mesmo estando o
adro e as escadarias concluídos, o primeiro trabalho do escultor na
região não foram os profetas, mas sim as imagens dos passos. As capelas,
até então, não tinham sido iniciadas. Ao escultor, além da coordenação
de todos os trabalhos do ateliê, cabia esculpir várias das estátuas. A
distinção entre aquelas peças criadas pelo próprio mestre e as
atribuídas aos seus assistentes é motivo de uma análise à parte.
ESTILO PRÓPRIO Não
há como negar que existe uma superioridade entre as imagens criadas
pelo artista e seus seguidores. Germain Bazin, um dos principais
biógrafos de Aleijadinho, já enumerou lá atrás as características do
estilo do artista, como os “panejamentos angulosos” e alguns aspectos
peculiares à morfologia dos corpos, citados nos estudos de Myriam
Andrade Ribeiro. São exemplos a estrutura robusta com músculos e veias
salientes; a articulação em V do pescoço; a conformação especial do
rosto com os malares altos e o queixo dividido em duas seções; os olhos
rasgados com linha inferior em semicírculo; os lacrimais acentuados e a
íris plana (quando da ausência dos olhos de vidro); as sobrancelhas
altas e em linha contínua com o nariz; o contorno sinuoso dos lábios; os
dedos alongados com as unhas quadrangulares e o defeito da má
implantação do polegar. A distinção entre o que é ou não de autoria de
Aleijadinho, apesar dos traços fortes do seu estilo, se dificulta,
devido ao esforço imitativo dos seguidores.
Há várias
peculiaridades nos Passos da Paixão em Congonhas que merecem atenção.
Diretor de Patrimônio de Congonhas, o também escultor Luciomar de Jesus
faz questão de ressaltar que este é o último grande trabalho de
Aleijadinho. “Foi seu maior desafio também porque, embora tenha
trabalhado em São Francisco em Ouro Preto e São João, até então, não
havia realizado esculturas nessa proporção e quantidade.” Outra
peculiaridade é o fato de o conjunto representar um dos últimos suspiros
do estilo barroco. “Aleijadinho conseguiu realizar aqui nos Passos da
Paixão a primeira manifestação artística genuinamente brasileira ao
lançar mão de um repertório já desgastado na Europa e, com ele, imprimir
sua genialidade”, enfatiza. A dramaticidade das cenas também merece
atenção. “Ainda hoje quando os romeiros chegam até aqui eles se atêm ao
objetivo devocional e não somente com o aspecto artístico.”
LINHA DO TEMPO
Publicação: 30/03/2013 04:00
1780 -
Irmandade a Bom Jesus do Matosinhos começa a promover romarias e
angariar recursos para a construção de uma igreja e dos Passos da Paixão
1796 - Aleijadinho e sua equipe iniciam a execução de 66 figuras em cedro da Paixão de Cristo
1813 a 1818 - É construída a Capela do Passo do Horto, ao lado esquerdo da rampa, perto da ceia
1819 - Termina o trabalho de policromia das imagens da ceia, flagelação e crucificação
1864 - Começa a construção da Capela da Flagelação e Coroação de Espinhos. As obras dos passos ficaram paralisadas durante meio século
1867 a 1875 - Construída a penúltima capela, que abriga o Passo da Subida ao Calvário
1939 - Conjunto é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
1985 - Passos da Paixão passam a ser Patrimônio Mundial da Unesco
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