sábado, 30 de março de 2013

'Lanterna Mágica' é um espelho de Bergman

folha de são paulo

CRÍTICA BIOGRAFIA
Muito bem escrito, livro autobiográfico de cineasta conduz o leitor a um modo de estar no mundo bergmaniano
INÁCIO ARAUJOCRÍTICA DA FOLHA
"Com uma história dessas", escreve Woody Allen no prefácio da edição brasileira do livro de memórias "Lanterna Mágica", de Ingmar Bergman (1918-2007)-, "o sujeito é forçado a virar um gênio. Ou isso, ou ele ele acaba rindo, trancado num quarto de paredes espessamente estofadas pelo Estado."
Com efeito, ninguém dirá que a infância de Bergman não teve momentos de profundo sofrimento. Apanhar do pai com a ripa de bater tapetes ou levar bofetadas da mãe não eram coisas tão raras.
Mas a afirmação de Woody Allen se deixa, no mínimo, levar pelo exagero de explicar o gênio de Bergman pela educação. Esta era, afinal, a educação severa de um jovem nórdico e religioso no começo do século passado.
Talvez um pouco mais severa, já que o pai era o pastor do local onde viviam. Desse momento, é claro, restaram ressentimentos profundos.
Quando, em 1965, a mãe lhe telefona pedindo que visite o pai, internado para operar um tumor maligno, Ingmar respondeu "que não tinha vontade nem tempo, que meu pai e eu nada tínhamos a dizer um ao outro".
Depois, a mãe vai buscá-lo no teatro: "Estava lá para para me escutar repetir todas as imprecisões, insensibilidades e crueldades que eu havia dito ao telefone... Tentei abraçá-la e beijá-la, mas ele me repeliu com uma bofetada."
Uma bofetada no Bergman já então glória nacional sueca. E com técnica própria: batia com a mão esquerda, onde levava duas alianças: a de noivado e a de casamento. Um costume escandinavo, como explica o editor em nota.
Dito isso, nem só de infelicidade se fez a infância de Ingmar. Eis como ele a resume, a horas tantas: "Deveres, brincadeiras, liberdade, conformidade às leis e segurança.
O caminho para a escola na escuridão do inverno, o jogo de bola de gude e os passeios de bicicleta da primavera, as noites de domingo no outono, com as leituras em voz alta, junto à lareira".
Para resumir, talvez seja melhor não procurar uma explicação nesta autobiografia para a obra de Bergman. Ao contrário, se as notações do cineasta tivessem apenas uma virtude, seria talvez de nos levar a compreender e por vezes partilhar sua maneira de estar entre as coisas: é triste, pessimista, angustiada. Para ele, a falta de sentido da existência é frustrante.
"Tanto esforço, dor, inquietação, tédio, esperança para nenhuma satisfação. Por nada."Só o vazio: tanta religião na infância engendra a perda da fé. E em meio a isso o teatro e o cinema, Strindberg, as batalhas pessoais.
"Lanterna Mágica" não nos ajuda muito a compreender quem foi o artista Bergman. Mesmo em seus momentos mais descontraídos existe algo de bíblico, de severo, chegando como a chicotada ou o discurso do pai/pastor ("Sempre apreciei a honesta brutalidade do cinema internacional").
Em troca, o livro nos conduz a um ambiente, um tom, um modo de estar no mundo bem bergmaniano.
Dor, esforço e inquietação. E angústia, sempre. No filme "Gritos e Sussurros" (1972), mas não só. Eles estão no adolescente, com suas espinhas e masturbações, nos amores intensos e caóticos, seguidos de desapontamentos idem, na obra filmada.
Certo endurecimento que a maturidade e as contrariedades trouxeram ao diretor transparecem na descrição de seus sentimentos e na busca por compreender uma existência que lhe parece ano ano cada vez mais incompreensível, dolorosa e sem sentido.
Essa dureza, que leva ao coração da dor tantas vezes sem intermediários, também podemos reconhecer em boa parte de seus filmes. "Lanterna Mágica" é um espelho por escrito, muito bem escrito aliás, da obra desse grande cineasta.

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