CRÍTICA BIOGRAFIA
Muito bem escrito, livro autobiográfico de cineasta conduz o leitor a um modo de estar no mundo bergmaniano
"Com uma história dessas", escreve Woody Allen no prefácio da edição brasileira do livro de memórias "Lanterna Mágica", de Ingmar Bergman (1918-2007)-, "o sujeito é forçado a virar um gênio. Ou isso, ou ele ele acaba rindo, trancado num quarto de paredes espessamente estofadas pelo Estado."
Com efeito, ninguém dirá que a infância de Bergman não teve momentos de profundo sofrimento. Apanhar do pai com a ripa de bater tapetes ou levar bofetadas da mãe não eram coisas tão raras.
Mas a afirmação de Woody Allen se deixa, no mínimo, levar pelo exagero de explicar o gênio de Bergman pela educação. Esta era, afinal, a educação severa de um jovem nórdico e religioso no começo do século passado.
Talvez um pouco mais severa, já que o pai era o pastor do local onde viviam. Desse momento, é claro, restaram ressentimentos profundos.
Quando, em 1965, a mãe lhe telefona pedindo que visite o pai, internado para operar um tumor maligno, Ingmar respondeu "que não tinha vontade nem tempo, que meu pai e eu nada tínhamos a dizer um ao outro".
Depois, a mãe vai buscá-lo no teatro: "Estava lá para para me escutar repetir todas as imprecisões, insensibilidades e crueldades que eu havia dito ao telefone... Tentei abraçá-la e beijá-la, mas ele me repeliu com uma bofetada."
Uma bofetada no Bergman já então glória nacional sueca. E com técnica própria: batia com a mão esquerda, onde levava duas alianças: a de noivado e a de casamento. Um costume escandinavo, como explica o editor em nota.
Dito isso, nem só de infelicidade se fez a infância de Ingmar. Eis como ele a resume, a horas tantas: "Deveres, brincadeiras, liberdade, conformidade às leis e segurança.
O caminho para a escola na escuridão do inverno, o jogo de bola de gude e os passeios de bicicleta da primavera, as noites de domingo no outono, com as leituras em voz alta, junto à lareira".
Para resumir, talvez seja melhor não procurar uma explicação nesta autobiografia para a obra de Bergman. Ao contrário, se as notações do cineasta tivessem apenas uma virtude, seria talvez de nos levar a compreender e por vezes partilhar sua maneira de estar entre as coisas: é triste, pessimista, angustiada. Para ele, a falta de sentido da existência é frustrante.
"Tanto esforço, dor, inquietação, tédio, esperança para nenhuma satisfação. Por nada."Só o vazio: tanta religião na infância engendra a perda da fé. E em meio a isso o teatro e o cinema, Strindberg, as batalhas pessoais.
"Lanterna Mágica" não nos ajuda muito a compreender quem foi o artista Bergman. Mesmo em seus momentos mais descontraídos existe algo de bíblico, de severo, chegando como a chicotada ou o discurso do pai/pastor ("Sempre apreciei a honesta brutalidade do cinema internacional").
Em troca, o livro nos conduz a um ambiente, um tom, um modo de estar no mundo bem bergmaniano.
Dor, esforço e inquietação. E angústia, sempre. No filme "Gritos e Sussurros" (1972), mas não só. Eles estão no adolescente, com suas espinhas e masturbações, nos amores intensos e caóticos, seguidos de desapontamentos idem, na obra filmada.
Certo endurecimento que a maturidade e as contrariedades trouxeram ao diretor transparecem na descrição de seus sentimentos e na busca por compreender uma existência que lhe parece ano ano cada vez mais incompreensível, dolorosa e sem sentido.
Essa dureza, que leva ao coração da dor tantas vezes sem intermediários, também podemos reconhecer em boa parte de seus filmes. "Lanterna Mágica" é um espelho por escrito, muito bem escrito aliás, da obra desse grande cineasta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário