Além da formalização no âmbito do mercado
de trabalho, falta ao país a implantação do Estado de bem-estar, com
aprofundamento dos direitos sociais e construção de uma nova mentalidade
política
Rubens Goyatá Campante
Estado de Minas: 27/04/2013
“O Brasil caminha para a justiça, o
resultado dessa votação é um avanço para essa classe de trabalhadores,
que há tempos lutam pela ampliação de seus direitos. Eles são
responsáveis por um serviço tão humano e familiar, que não há nenhum
salário que pague, mas sim nosso devido respeito e reconhecimento de que
a classe tem que ter seus direitos assegurados.” Assim a deputada
federal Benedita da Silva, do PT/RJ, relatora da Proposta de Emenda
Constitucional 487/2010, que ampliou os direitos trabalhistas dos
empregados domésticos, comentou sua aprovação, no início deste mês. O
texto da emenda, de autoria do deputado federal Carlos Bezerra, do
PMDB/MT, concedeu aos empregados domésticos direitos como o recolhimento
do FGTS, seguro-desemprego, jornada máxima de trabalho (44 horas
semanais e 8 horas diárias), com o consequente pagamento de horas
extras, adicional de trabalho noturno, salário família, auxílio creche e
seguro contra acidentes de trabalho. Apesar de alguns desses direitos,
como os quatro últimos, ainda necessitarem de regulamentação específica,
a emenda certamente representa um passo fundamental para que os
domésticos alcancem a igualdade em relação aos outros trabalhadores
brasileiros.
Há 70 anos, em 1943, a Consolidação das Leis do
Trabalho, então recém-promulgada, excluiu explicitamente tais
trabalhadores do rol de prerrogativas nela garantidas, relegando à
própria sorte e à eventual boa vontade dos patrões a dignidade de
milhões de mulheres pobres (a imensa maioria dos domésticos, ontem e
hoje), e chancelando um padrão de trabalho em que eram claros os ecos do
escravismo doméstico, com seus elementos paradoxais de violência
latente e proximidade, de paternalismo autoritário e benevolência
eventual. Somente em 1972 teve início a regulamentação do labor
doméstico, com a Lei 5859, que concedia a esses trabalhadores férias
anuais, filiação à Previdência e anotação de carteira de trabalho. E só.
Os domésticos tiveram de esperar, primeiro, a Constituição de 1988 para
que lhes fossem reconhecidos direitos como salário mínimo,
irredutibilidade salarial, 13º salário, repouso semanal, licença
maternidade e paternidade e aviso prévio proporcional, e, finalmente, a
recente emenda para que, ao menos legalmente, deixem de ser
trabalhadores de segunda categoria.
A Lei 5.859/72 definiu como
empregados domésticos aqueles que prestam um serviço contínuo, de
natureza não lucrativa, na residência de pessoas ou famílias. Essa
caracterização legal da categoria inclui, além das empregadas domésticas
em sentido estrito, aqueles que trabalham como babás, cuidadores de
idosos, cozinheiras, motoristas, caseiros, jardineiros, entre outros. Já
quanto à inclusão das chamadas diaristas na categoria de empregados
domésticos, a lei silencia, e a jurisprudência, em geral, demanda que o
quesito da continuidade do serviço seja provado, e assim a pessoa que
trabalha em uma residência uma ou duas vezes por semana, em dias não
definidos, e recebe o pagamento sempre ao final do dia, não costuma ser
considerada empregada doméstica, mas autônoma.
Mesmo assim, em
termos socioeconômicos, as diaristas são, certamente, trabalhadoras
domésticas, e é assim que o IBGE as considera, e apresenta o dado
estatístico de que em nosso país laboram, como diaristas ou empregados
domésticos, pouco mais de 7,2 milhões de pessoas, quase 70% delas sem
carteira de trabalho assinada. Para as mulheres, que constituem 93% da
categoria, é, de longe, a principal ocupação. Segundo cálculos da
Organização Internacional do Trabalho, o mundo possui cerca de 53
milhões de trabalhadores domésticos. O Brasil, com seus 7,2 milhões,
responde por quase 14% deste total – embora tenha pouco menos de 3% da
população mundial.
Clara, portanto, a disseminação do emprego
doméstico na sociedade brasileira, na qual boa parte das famílias de
classe média – e não somente as famílias ricas, como nos países
desenvolvidos – possuem empregados domésticos. Tal disseminação tem
marcantes consequências, econômicas, socioculturais e até políticas.
Diante disso, a aprovação quase unânime da emenda pelo Congresso
Nacional, permitiria supor que a sociedade brasileira apoia em peso as
mudanças? Infelizmente não. Há fortes resistências. Compreensíveis, já
que, caso seja alcançado o objetivo primordial da emenda, igualar em
direitos e dignidade os domésticos aos outros empregados, a classe média
e os ricos perderão acesso a um serviço barato.
Anacronismo
É
curioso, contudo, que as criticas raramente são abertas. A maior parte
dos discursos admite a injustiça da situação desses trabalhadores, mas
coloca problemas, obstáculos e pré-condições de origem prática,
geralmente econômica, para que tal situação seja remediada. País em que
os privilégios oligárquicos mais gritantes e anacrônicos dividem espaço
com um desejo cultural remarcado, especialmente por parte da elite, de
pertencer ao rol dos países “adiantados”, “civilizados”, o Brasil é um
lugar em que, como afirmava Roberto Schwarz, o atraso social é uma
vergonha, e o progresso, uma desgraça.
Para justificar a
vergonha e evitar – ou ao menos postergar o máximo possível – a
desgraça, os argumentos são os mais variados. Embora menos, ainda se
ouve a velha cantilena patriarcal do “para que tudo isso, se ela é como
uma pessoa da casa, da família, se nós sempre a ajudamos?”. Mas ainda
quando, pela benevolência dos patrões, a doméstica é tratada como “da
família”, ela continua a comer na cozinha e a usar o quarto e o banheiro
de empregada – e isso quando tem a sorte de ter seus direitos legais
cumpridos. Ou seja, sua situação é inarredavelmente inferior, e há uma
tendência, principalmente das mulheres mais jovens, a evitar o serviço
de doméstica mesmo quando receberiam mais por ele que em outras
ocupações. A condição subalterna das domésticas, com sua inescapável
sensação de rebaixamento social, tem sido difícil de suportar para uma
juventude exposta ao discurso e às promessas de individualismo moderno,
promessas nem sempre alcançadas, mas avidamente buscadas.
Mas há
outros argumentos, menos arcaicos, para evitar/postergar o progresso
social. Uma revista de grande circulação nacional apontou, em matéria de
capa, que a “Emenda das domésticas” é justa, mas está incompleta:
deveria vir acompanhada de leis que tornassem a contratação mais barata e
o mercado de trabalho mais flexível. A flexibilização das leis
trabalhistas é um velho discurso liberal. Até 10, 15 anos atrás,
brandiam-no em nome do combate ao desemprego – quando nossas obsoletas
leis trabalhistas fossem flexibilizadas o nível de emprego subiria,
afirmavam. O que melhorou, porém, as taxas de emprego foi o
desenvolvimento econômico, mesmo com a manutenção das “obsoletas” leis
de proteção básica ao trabalhador. Certamente algumas mudanças no padrão
intervencionista da CLT, em nome da liberdade de contratação e da
negociação entre capital e trabalho, poderiam ser benéficas, mas
respeitando-se um patamar mínimo, inegociável, de direitos. Nem sempre,
porém, o patronato pretende respeitar esse limite quando brada pela
“liberdade de contratação e negociação” e, no caso dos domésticos, tal
patamar mínimo só agora foi formalmente alcançado. Em relação a eles,
portanto, tal argumentação é uma proposição disfarçada da estratégia de
dar com uma mão e tirar com a outra.
A mais séria objeção à
emenda é a que antevê o aumento da informalidade no setor de trabalho
doméstico, com as domésticas migrando para o posto de diaristas – algo
que já vem acontecendo, inclusive pelas razões socioculturais
mencionadas acima. Nesse ponto, é importante lembrar que, das mais de
sete milhões de famílias que empregam trabalhadores domésticos, a
maioria é de classe média, que vem sofrendo uma série de perdas em seus
rendimentos, lutando desesperadamente para manter seu status social.
Alto e baixo
Espremida
entre a minoria de cidadãos realmente privilegiados e a maioria de
pobres e miseráveis, a classe média brasileira, de modo geral,
identifica-se mais com os de cima que com os de baixo, buscando, muitas
vezes à custa de sacrifícios pessoais como o trabalho extenuante e o
endividamento, copiar os altos padrões de consumo da elite. Submetida,
como os pobres, a uma série de explorações e injustiças estruturais, é
obrigada a arcar com os custos de educação, saúde, transporte, segurança
e outros direitos básicos que o poder público, com a razoável carga
tributária que o Estado impõe à sociedade, poderia e deveria prover.
Carga tributária absolutamente injusta, com seu peso excessivo sobre o
consumo e a renda assalariada, e seu alívio do grande capital e da
grande propriedade. Durante muito tempo a classe média compensou, até
certo ponto, a ausência desses direitos com o privilégio do acesso a
serviços baratos, ofertados pelos pobres – dentre eles os serviços
domésticos. E assim pouco se solidarizava com estes na defesa da
universalização e melhoria dos direitos sociais. Que lhe importava se os
direitos trabalhistas, a saúde, a educação, o transporte, a segurança
dos mais carentes eram precários se ela podia pagar para tê-los com
qualidade razoável? Não percebia o quanto sua própria condição
melhoraria se ela não tivesse de pagá-los.
Essa situação tem
mudado. Os privilégios relativos da classe média em relação aos pobres
têm diminuído, mas seu acesso a direitos sociais não tem aumentado. E
sua indignação com as dificuldades por que tem passado assume a forma,
desfocada, do discurso anticorrupção, o qual, insuflado pela mídia,
mascara os problemas estruturais do país e até mesmo o próprio problema,
real, da corrupção, ao identificá-lo somente no âmbito dos “políticos
ladrões”.
Assim, o complemento que falta à formalização dos
direitos dos domésticos é o da implantação efetiva do Estado de
bem-estar no país, o do aprofundamento dos direitos sociais, o da
construção de uma nova mentalidade social, mais igualitária e menos
patriarcal. Tal complemento viria, no limite, a reduzir a própria
categoria dos trabalhadores domésticos, o que seria positivo. Pois
quando os filhos, maridos e companheiros passarem a dividir as tarefas
do lar, quando houver escolas públicas de boa qualidade, em horário
integral, para se deixar as crianças, e lugares decentes para acolher e
cuidar dos idosos, quando os homens e mulheres de classe média não forem
obrigados a jornadas de trabalho excessivas, quando os domésticos forem
profissionais com os mesmo direitos e dignidade de outros, o serviço
doméstico será, como nos países desenvolvidos, uma categoria residual,
pago pelas famílias realmente ricas.
A condição de tal
complemento é uma verdadeira distribuição de renda e poder no país, a
ser cumprida mirando-se os reais e profundos privilégios da nossa
oligarquia, e não as migalhas que sobram para a classe média.
Estaríamos, aí sim, alcançando um legítimo ganho civilizacional.
* Rubens Goyatá Campante é doutor em sociologia e pesquisador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT-3ª Região.
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