Estado de Minas: 27/04/2013
Lygia completa 90 anos como autora de obra que alia sensibilidade para a vida íntima e para o painel social de nosso tempo |
Lygia Fagundes Telles acaba de completar 90 anos. Mulher bela, elegante, sua imagem pública parece combinar com uma literatura que se convencionou chamar de “escrita feminina”, pela sutileza, capacidade de observação, preferência pelos temas íntimos. No entanto, nada mais distante de Lygia que os chavões e prejulgamentos. Seus livros, no trato com a ficção e a realidade, têm uma força que rompe com os estereótipos, uma localização social e política no tempo, uma habilidade estilística e poder de linguagem que vai além de todas as formas. Por isso, nessa hora, o melhor é mesmo reler os livros de Lygia e perceber sua potência universal e seu valor que foi além do tempo que os gerou.
Não é incomum, quando se fala da escritora, colocá-la na companhia de Clarice Lispector e Hilda Hilst, de quem foi amiga e sobre as quais escreveu passagens importantes e reveladoras. São três grandes escritoras do século 20. Clarice aconselhava a Lygia que sorrisse menos, para ser levada mais a sério; Hilda perguntava a ela do que fugia, com seu jeito incontido de ir a cada momento para um lado diferente. As duas amigas, também estilistas sublimes, pareciam dotadas de demônios interiores que as conduziam para o limite do indizível. Lygia vai na direção inversa: avistando os mesmos mistérios, tratava-os com a voz clássica de quem não entende tudo, mas nem por isso se impacienta, e busca seu modo próprio de se expressar. Como Machado de Assis. Como uma felina.
Nascida em São Paulo, Lygia estudou direito no Largo do São Francisco, formou-se também em educação física e foi procuradora do Instituto da Previdência do Estado de São Paulo até se aposentar. Exerceu também militância na área do cinema, presidindo a Cinemateca Brasileira depois da morte de seu segundo marido, Paulo Emílio Salles Gomes. Pertence às acadamias Paulista e Brasileira de Letras. Escreveu livros de contos, romances e volumes inclassificáveis, misto de crônicas, ensaios e memórias. Recebeu muitos prêmios, entre eles o Camões (2005), considerado o mais importante da língua portuguesa. Foi amiga de escritores como Carlos Drummond de Andrade, Erico Veríssimo e José Saramago.
Os dados exteriores da biografia, ainda que notáveis, são apenas referências de dois outros universos habitados pela escritora, o político e o literário. Lygia viveu e produziu parte de sua obra sob a ditadura civil-militar e sempre se postou do lado da liberdade, com uma coragem que faz par com a elegância de seu modo de ser. Quando uma comissão de escritores foi a Brasília entregar ao ministro da Justiça o Manifesto dos Mil, uma declaração dura contra a censura, ela estava presente. Mas foi sobretudo em seus livros que os anos de chumbo ganharam veemente condenação, principalmente em seu romance mais conhecido, As meninas, de 1973.
O livro narra a história de três amigas que moram num pensionato de freiras e que, por caminhos diferentes, vivem a transição para a vida adulta num mundo marcado por transformações no campo da política e do comportamento. Lorena namora um homem casado; Lia milita na luta armada contra a ditadura militar; Ana Clara se afunda nas drogas e pensa em se entregar a um casamento de convenção. Os temas, que poderiam ganhar um tratamento épico e discursos ideológicos, libertários ou moralizantes, são tratados a partir das personagens, de sua vida íntima, da consciência de pertencer ao mundo em dissonância com os motivos mais pessoais. Lygia, com habilidade extrema, constrói seu universo de ambivalência a partir da alma de suas meninas. Talvez o por isso o livro seja tão forte e inteiro; e a sociedade, em seus descaminhos de toda ordem, ecoe de forma tão vívida no romance. O que importa para Lygia, sempre, são as pessoas. Não pode haver atitude mais política do que essa.
Delicada crueldade
Se o aspecto político surge sempre nos livros de Lygia, é bom frisar que eles nunca puxam a história. A grande realização da escritora é literária. É por meio de sua expressão, ao mesmo tempo clássica e experimental (ela utiliza recursos sofisticados com leveza, envolvendo mesmo o leitor mais desavisado) e tem sempre como propósito revelar o melhor e o pior do homem. Lygia observa os detalhes com astúcia, mas é também capaz de painéis sociais compreensivos, principalmente sobre a classe média urbana, especialmente acerca das mulheres.
A escritora iniciou a carreira como contista. Depois de relegar alguns escritos de juventude (na verdade cinco livros de histórias curtas), deu por começada a trajetória de suas obras com Antes do baile verde, uma espécie de antologia pessoal. As histórias curtas de Lygia são sempre surpreendentes, seja no tema ou na realização literária. Sob a aparente crônica da burguesia urbana paulista surgem momentos marcados pelo desencontro, pela solidão, pela incomunicabilidade, pelo mistério, pela capacidade de tocar nas franjas do inacreditável e do fantástico, pela profundidade psicológica e pela compreensão crítica da hipocrisia das relações sociais e familiares.
A escritora, com sua sempre destacada distinção e apuro formal, nunca corre o risco de ser acusada de escapista, como se a literatura fosse apenas um jogo para deixar o mundo problemático do lado de fora. Seu empenho é exatamente o oposto: incorporar a dimensão menos visível da realidade a partir do estudo de momentos decisivos que, sem seu olhar, passariam batidos na espuma dos dias. A obra de Lygia é um chamado permanente à atenção com as coisas e as pessoas, principalmente aquelas marcadas pelo efeito corrosivo do tempo e das relações humanas. O conto que dá nome ao livro, Antes do baile verde, é uma síntese desse procedimento. Duas moças, Lu e Tatisa, se divertem à janela durante a passagem de um rancho de carnaval enquanto dentro de casa o pai de Tatisa agoniza. É desses contrastes, muitas vezes cruéis, que é feita a vida. E as histórias de Lygia.
Nos romances, ela mantém o estilo, mas alarga a ambição, desenhando as personagens com mais vagar, criando novas vozes narrativas e compondo quadros em que a situação social se torna mais vívida. São sempre obras fortes, como As meninas, mas cada uma delas traz elementos originais de pesquisa literária e psicológica. Em Verão no aquário, por exemplo, há o conflito entre mãe e filha, entre tradição e renovação, entre o verão (como força irruptora) e o aquário (em sua redoma de proteção e isolamento). Em Ciranda de pedra, de 1954, período de forte marca do romance social, Lygia se aprofunda numa história de loucura, paixão e morte, que viceja escondido no subterrâneo de uma família de classe média. O livro ganhou de Carlos Drummond de Andrade uma avaliação definitiva: “Um livro perturbador, que nos prende e nos assusta, que nos faz sofrer ao mesmo tempo que nos oferece o remédio compensador da arte”.
Já senhora de seus instrumentos, a grande dama, à medida que o tempo passava, a partir dos anos 1980, foi desviando sua expressão para escritos de outra natureza: crônicas, pequenos ensaios e exercícios de memória. Em estilo que a aproxima do leitor como de um amigo, ela conta histórias, fala de momentos vividos, transfigura outros em ficções discretas. Põe em funcionamento as máquinas da imaginação e da lembrança. Dessa fatura fazem parte volumes como A disciplina do amor, Invenção e memória e Durante aquele estranho chá. São observações sábias sobre a realidade, mas que a reinventam; fragmentos que tornam lúcidas visões que surgem do mistério; a disciplina da mais indisciplinada das artes, o amor.
Lygia Fagundes Telles, aos 90 anos, tem ao seu lado uma obra que é patrimônio da melhor literatura brasileira do século 20. O leitor dispõe de uma boa edição de suas obras completas pela Companhia das Letras, com posfácios excelentes e depoimentos críticos bem selecionados. Talvez o maior encanto, quando se volta à leitura para Lygia Fagundes Telles, seja sentir o grande prazer que só a literatura é capaz de dar (e da qual tanta gente anda distante), uma sensação de humildade e curiosidade frente ao mundo e às pessoas, que vai sendo preenchida por uma espécie de sensação que não é nem inteligência nem emoção, mas compaixão.
Lygia nos faz contemporâneos de nós mesmos (porque sofrer e amar não têm tempo) e nos recoloca como integrantes da família humana, que não cessa de se espantar com seus mistérios. Elegância à beira do abismo. É o máximo que podemos querer da vida e da arte.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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