A bicicleta epiléptica, de Edward Gorey,
revela ao leitor brasileiro um autor capaz de mostrar que a realidade
está muito mais louca do que pensamos
João Paulo
Estado de Minas: 27/04/2013
O americano Edward Gorey (1925-2000) foi um
homem muito diferente da média das pessoas. Em primeiro lugar, era um
ilustrador genial. Além disso, tinha um estilo surrealista e nonsense
que deixava desconcertados os leitores, embora eles se encantassem com
seus paradoxos. Mas tem mais: autor de mais de 100 livros, parecia um
criador de histórias infantis, mas suas narrativas, em palavras e
imagens, eram de meter medo. Um medo metafísico, feito mais de angústia
que de sustos. Para completar, foi um homem que viveu sozinho com seus
bichos, não se casou nem teve filhos, usava anéis vistosos, casacos de
pele e tênis de cano alto.
Só agora, 13 anos depois da morte de
Gorey, chega ao Brasil um livro do escritor que encantou de Hermann
Hesse a Samuel Beckett (de quem ilustrou livros e com quem tem muitas
afinidades). O pequeno volume lançado pela Cosac Naify é A bicicleta
epiléptica, traduzido por Alexandre Barbosa de Souza e Eduardo
Verderame.
O formato do livro já define um pouco seu propósito.
Diminuto, com utilização apenas das páginas ímpares, com uma ilustração
em preto e branco e uma frase como legenda em cada folha. Ao todo, são
31 pranchas que se encadeiam para contar a história de Embley e Yewbert.
Os dois irmãos brincam num tempo indistinto (“não era mais terça-feira,
mas ainda não era quarta”), quando ouvem um barulho atrás do muro.
Surge o novo personagem, uma bicicleta “desacompanhada”. Depois de
disputarem sua posse, saem juntos a pedalar.
O que se segue, no
laconismo do texto e nas estranhas paisagens do trajeto, vai desde raios
que atingem os irmãos até o encontro com um jacaré, que é morto por
Embley com um chute “na ponta do nariz dele”, passando pelo desabamento
de um celeiro, tempestades e perda de “14 pares de sapatos amarelos”. Ao
fim da jornada, os irmãos voltam para casa e encontram um obelisco que
foi erguido havia 173 anos, em memória deles. A bicicleta “solta um
suspiro” e cai aos pedaços.
A escolha por começar a divulgação da
obra de Gorey para o público (além dos aficionados, já que ele tem
dezenas de admiradores no Brasil, sobretudo entre os profissionais do
desenho) por esse título é acertada. Trata-se de uma introdução ao
estilo do autor. As ilustrações, sofisticadas e elegantes, remetem a
outros trabalhos mais radicais e góticos de Edward Gorey, que entre
outros seguidores poderia alinhar o cineasta Tim Burton. O texto, um
poema singelo e surreal, é feito mais de climas que de palavras, como se
manifestasse uma aceitação da realidade como ela é. O autor não insere
estranhezas na realidade; o mundo é que é doido e não percebemos.
Taoísmo
Há
um gesto de entrega aos desejos do destino, mesmo com seus absurdos,
que por vezes lembra alguns contos de Kafka, por outras sentenças
taoístas. Há ainda quem o compare a Neil Gaiman (pela fantasia) e Lemony
Snicket e Lewis Carroll (pelo nonsense).
Para os que insistem
em ver no autor um criador de histórias para crianças (a própria editora
classifica a obra na ficha catalográfica como infantojuvenil), basta ir
a outros livros de Gorey, sobretudo A criança sem sorte (ainda sem
tradução no Brasil), para ter acesso direto ao universo de desencanto e
tristeza que caracteriza sua visão de mundo. Sem espaço para a
felicidade, o livro traz ainda um conjunto de crueldades sem redenção.
Morte e violência são elementos presentes na maior parte do trabalho do
artista.
O artista parece que buscava, até o fim da vida,
encontrar seu próprio caminho. Foi, com o tempo, se tornando quase um
personagem de si mesmo. Não pode haver coerência maior entre criador e
criatura.
Bicicleta epiléptica
. De Edward Gorey
. Editora Cosac Naify, 64 páginas, R$ 35
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