Branco, um branco veemente e
trágico, que ilumina todas as
coisas: essa é a imagem insistente
que me vem enquanto leio
“Tangolomango” (Record), o novo
romance de Raimundo Carrero.
O Aurélio me ajuda. “Branco: diz-se da impressão
produzida no órgão visual pelos raios da
luz não descomposta”. O branco fala, portanto,
da mistura intensa, dos mundos inseparáveis,
da coabitação de contrários que designam, em
resumo, a alma humana. A alma humana é branca.
É assim também Tia Guilhermina, a protagonista
de “Tangolomango”: branca, muito branca
(de espírito, não de pele). Viva, muito viva, apesar
da dor feroz que não a abandona.
Perguntas traiçoeiras lhe perturbam a alma.
“Que é melhor? Chorar no espelho ou por trás
do espelho? Mergulhar na própria imagem e
deixar-se devorar por ela. Decifrar-se. Devorarse.
Vasculhar com os olhos o enigma de si mesma”.
Tia Guilhermina, como todo humano, é um
enigma. Não sabe se faz as escolhas certas. Ninguém
lhe dá garantias — nem ela mesma. Mal,
muito mal, se suporta. Mas vive, e com que entusiasmo!
Tem uma dor que não a deixa: o sobrinho
Matheus, o grande amor (não carnal) de sua
vida, que será julgado por um crime odioso. Em
uma viagem ao Salgueiro, interior de Pernambuco,
estuprou e matou a mãe e a irmã. Como
aceitar este ato de um menino (ela sempre o
chama de menino) tão amado?
Raimundo Carrero relata a vida branca e suja
de Guilhermina com uma escrita, ela também,
entrelaçada. A linguagem do romance imita o
espírito da personagem. É o modo sutil que Carrero
encontra para dialogar com a mulher que
criou. Ao fundo, o velho Recife, atravessado por
épocas distintas, sempre agitadas pela euforia
do carnaval. Os capítulos são curtos e lembram
as crônicas — talvez sejam crônicas, delicadas
crônicas pernambucanas. Mas o compromisso
de Carrero não é com a realidade, seu pacto é
com o diabo da invenção. Tenho certeza, pois o
conheço bem: e, se isso o condena, também o
salva. Não consigo imaginar Carrero sem sua ficção.
Um escritor desprovido de sonho é um homem
amputado.
Bruscos saltos no tempo: a história do Brasil, de
seus miseráveis agrupados em “blocos de sujos”,
de sonâmbulos que vagam pelas ruas, dos cães vadios
que se alimentam do mato dos bueiros, todo
esse Brasil intrincado e excessivo
surge inteiro no romance de
Raimundo Carrero. Mas ele não
faz história — Tia Guilhermina é
um fantasma —, faz ficção. Logo:
imitando sua personagem, enquanto
escreve sobre Guilhermina,
Carrero devora a si mesmo.
Quanto a ela, indiferente à
presença de seu autor, é uma solitária.
Mais que isso: uma mulher
apaixonada pela solidão.
“Não tinha namorados nem
amigos nem amigas, alimentava a solidão abandonada”.
Os vizinhos estranham sua dedicação ao
sobrinho Matheus. “Que fazia uma velha sozinha
com um menino dentro de casa, tocando piano?”
O garoto doce, agora um assassino. O complexo e
indecifrável — branco —, o movimento atordoante
das coisas. A vida, enfim.
Assim é a escrita de Raimundo Carrero: uma escrita
viva que, mais que “fazer estilo”, mais até do
que “contar boas histórias” — como hoje está tão
em moda —, agarra-se ao mundo e, em uma luta
selvagem, tenta arrastá-lo para o interior do livro.
Uma literatura viva, ardente, que queima as mãos
do leitor. Que o acorda. “Este romance foi escrito
para ser lido de um fôlego só, de preferência das
seis horas ao meio-dia, com a
força da luz e do sol”, adverte Carrero,
em breve nota introdutória.
Traindo-o, comecei a ler “Tangolomango”
em um fim de tarde,
sob um abajur de luz fria. Mesmo
assim, com o avançar das páginas,
fui tomado por um intenso
calor. Justifica Carrero em sua
advertência: “Sempre escrevo de
acordo com a passagem da luz
porque assim aprendi a viver
desde minha infância”. Mas a luz
não vem de fora, vem de dentro. Emana do livro,
branca, muito branca, muito suja, e nos engole.
Pelo romance, circulam personagens inesquecíveis,
como o dono do “único, esmolambado, triste,
sujo e belo bloco O Cachorro do Homem do Miúdo”.
Bloco carnavalesco de um folião só, nele um
homem segue um cão vira-latas, enquanto toca
seu pandeiro, ou sopra o clarinete. Desconhece-se
seu nome. Segue o cachorro pelos becos do Recife,
não sabe andar sozinho. Isso, porém, em
vez de sofrimento, lhe traz um sentido. “O que
surpreende é o fato de ele seguir o cachorro.
Sempre. Sem mudar de rua, de beco ou de esgoto.
Seguindo, seguindo. Talvez até de olhos
fechados”. Este homem, que se transformou na
sombra de um cão, é, um pouco, todos nós,
aprisionados que somos aos instintos e aos desmandos
da natureza. Infiéis a nós mesmos porque,
enquanto a mente nos puxa para um lado,
a carne — sempre o inferno da carne, que a ficção
de Carrero nunca abandona — nos arrasta
para outro. Somos assim: bichos. Podemos ter
fé. Alegria. Paixões. Podemos pensar e até escrever
romances, mas continuamos a ser, sempre,
animais.
Também Tia Guilhermina acha que seu sobrinho
Matheus está dominado pelos excessos.
“Ela dizia a ele, mesmo quando era um menino,
você é um homem excessivo”. Ao piano, a tia tocava
Villa-Lobos, Chopin, Debussy, na esperança
de amansá-lo. Mas o bicho que ele carrega
dentro de si só faz explodir e crescer. Somos
assim: feitos de contínuas comoções e de pequenas
explosões. Ela própria, Tia Guilhermina,
há quanto tempo não sonha em viver em
um cabaré? Segue, à risca, as palavras de Fernando
Pessoa: “Não o prazer, não a glória, não o
poder: a liberdade, unicamente a liberdade”.
Para Guilhermina, as moças que vivem nos cabarés
são como santas, “feito quem vive num
monastério, retiro do mundo, coração das alturas”.
Também inveja as prostitutas: “Para ela, a
prostituição tinha alguma coisa de retiro, de
distanciamento do mundo, de ausência”. Queria
ser prostituta, mas uma prostituta sem homens.
“Com homens para sonhar e não para viver”.
Em meio aos solavancos da vida, Tia Guilhermina
— sempre arrastada pelos sons do
carnaval do Recife — procura caminhos para
ser. Enquanto o mundo a atormenta, ela se eleva,
e expõe sua alma branca pelas ruas. Uma alma
que nos envolve e que nos devolve uma
imagem bela, embora cruel, do existir.
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