Correspondência inédita de Godofredo
Rangel a Monteiro Lobato pode chegar a livro em breve. Acervo está
preservado em Belo Horizonte, sob a responsabilidade do artista Márcio
Sampaio
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 27/04/2013
Durante mais de 40 anos, os escritores
Monteiro Lobato (1882-1948) e Godofredo Rangel (1884-1951), que foram
amigos da vida inteira, mantiveram uma intensa correspondência, que se
iniciou em 1903. A ligação entre os dois começou no final do século 19,
quando ficaram se conhecendo em São Paulo. Ambos ainda eram estudantes e
tinham suas pretensões literárias. Logo em seguida, cada um tomou seu
rumo na vida. Mas a amizade entre os dois nunca deixou de existir.
No
correr de quatro décadas, o escritor paulista, que ficaria imortalizado
por obras-primas como O Sítio do Picapau Amarelo e Urupês, e o amigo
mineiro, que escreveu os romances Falange gloriosa e Vida ociosa,
trocaram centenas de cartas, nas quais falaram sobre todos os assuntos,
da intimidade familiar à política, passando, logicamente, pela
literatura. Até longuíssimas partidas de xadrez, por incrível que
pareça, eles jogavam, valendo-se dessa troca de correspondência.
Parte
deste material, as cartas de Lobato para Rangel, foi publicado em
livro, em 1944, pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo, com o
nome de A barca de Gleyre: quarenta anos de correspondência literária.
Isso só foi possível porque Monteiro Lobato, em determinada época,
propôs ao amigo Godofredo Rangel o retorno das cartas aos seus autores.
No ano passado, A barca de Gleyre ganhou uma nova edição, pela Globo, de
São Paulo. Mas a contrapartida, que são as cartas de Rangel para o
amigo Lobato, quase na sua totalidade, continua inédita.
O
guardião deste verdadeiro tesouro da literatura brasileira, que
provavelmente virá à tona em breve, pois negociações já começaram a ser
feitas com uma editora paulista interessada em publicar as cartas de
Godofredo Rangel para Monteiro Lobato, é o artista plástico e escritor
mineiro Márcio Sampaio. Ele foi casado com uma neta do escritor, a
também artista plástica Eliana Rangel, que já morreu.
Pouco
antes de falecer, o pai dela, o professor Nello de Moura Rangel, confiou
ao genro a totalidade do acervo de Godofredo, que hoje, guardado em
dezenas de pastas, ocupa boa parte do apartamento onde Márcio vive, no
Bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte. É ali que ele, com a paciência
adquirida com o passar dos anos, vem colocando em ordem todo este
material, até que esteja a ponto de ser editado.
Algumas cartas –
mais de 90% delas continuam inéditas – chegaram a ser publicadas em
número especial do Suplemento Literário do Minas Gerais, lançado em
1984, por ocasião do centenário de nascimento de Godofredo Rangel,
natural de Três Corações, no Sul de Minas.
Vida ociosa
Ainda
adolescente, depois da morte do pai, Godofredo foi para São Paulo e
estudou no Colégio Oficial, até ingressar na USP, onde se bacharelou em
direito. Até se aposentar como juiz de direito, em 1937, quando servia
em Lavras, passou por várias cidades mineiras. Seu primeiro romance,
Falange gloriosa, saiu em 1917, e até sua morte, em Belo Horizonte, em
agosto de 1951, três anos depois da perda do amigo Monteiro Lobato,
Godofredo Rangel publicaria vários outros livros, todos hoje esgotados.
A
última obra do escritor que ganhou reedição foi Vida ociosa, pela
Editora Casa da Palavra, em parceria com a Fundação Casa de Rui Barbosa,
em 2000. O prefácio foi feito pelo romancista Autran Dourado.
Atualmente, a obra de Godofredo é tema da tese de doutorado, em
continuação à dissertação de mestrado que foi defendida pelo professor
Lutiane Marques na Universidade Estadual do Norte Fluminense, em Campos
dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, em 2011.
Autor de diversos
livros, Márcio Sampaio, que acaba de lançar dois títulos, Eliana Rangel:
construções afetivas e Nello Nuno, a poética do cotidiano, conta ainda
que, quando recebeu o acervo das mãos do sogro, “com todas as
recomendações”, uma pequena parte dele – algumas cartas, as mais íntimas
– que talvez pudesse expor outras pessoas tinha sido destruída,
cumprindo um pedido do próprio Godofredo Rangel, feito pouco antes de
morrer. “Mas nada grave, a ponto de comprometer a importância dessa
correspondência, que espero ver publicada em breve, para que mais
pessoas possam ter acesso a ela”, diz Márcio. O Estado de Minas, que
teve acesso exclusivo ao material, transcreve algumas das cartas.
Carta de Godofredo Rangel
a Monteiro Lobato
Três Pontas, MG, 16/11/1919
Lobato,
Acabei
de receber um cartão do Albino, participando-me em frases breves,
incoerentes, que deixam transparecer delírios de júbilo, que se vai
casar. Lembrou-me mandar-lhe aquela carta memorável que me escrevestes e
que te fiz reler nas vésperas do teu casamento. Assim, prestaria ela
serviços pela terceira vez. Não a mandei, por achar-se ela aí em tuas
garras, desde época remota em que incautamente te confiei tuas cartas,
nunca suspeitando que elas se iam de vez, como as ilusões da juventude
no soneto célebre.
Quanto ao meu livro, seguirá breve (o Vida
ociosa) para que o edites em um volume se ainda mantiveres atrevida
intenção. Vais talvez arriscar dinheiro impropriamente e, o que é, pior,
dinheiro da Sociedade que organizaste. Por isso, quando eu te mandar os
originais, pensa bem antes, para que evites malogro daquela natureza
para ti e remorsos para mim.
Não sei se já te disse que até nas
profundas dos sertões vi teus Urupês. Encheste todo o Brasil com teu
nome. Trata de explorar essa nomeada, editando livros sucessivos. Tens
matéria para uma biblioteca. Teu nome me tem servido de carta de
apresentação para muita gente. Quando digo que sou teu amigo, arregalam o
olho de admiração e tratam-me nas palminhas!
Última leitura:
Pequenos poemas em prosa, de Baudelaire. Livro para se ler aos 40 anos,
depois de embotados, apáticos, para se obter mais um entremeção nos
nervos.
Rangel
Resposta de Monteiro
Lobato a Godofredo Rangel
São Paulo, 1920
Rangel,
Passei
hoje a tarde relendo a Vida ociosa a pescar mandis e cochilos
tipográficos, como o Próspero. Que livro! Tu nem sabes o que é aquilo! É
uma obra-prima – é a grande obra do naturalismo no Brasil. É o livro
que ficará em uma literatura como padrão e gênero, tal a Bovary em
França. Estou com inveja da tua breve, fulgurante glória. O grande nome
de 921 vais ser tu. Eu, que brilhei até aqui, passo para a segunda
plana.
Lendo-o observei a diferença dos nossos temperamentos e
das respectivas artes. Sou romântico, o neo-romântico, do romantismo que
está saindo do naturalismo e aproveito o que há de bom neste. Serei
sempre mais vendável que tu. Bulo nas cordas mais graves das almas – a
trágica e a cômica.
Tu é a perfeição absoluta do naturalismo. Teu
descritivo é um requinte de desenho do natural, sem parelha no Brasil, e
inda superior ao de Eça. O Malta, do Pommery, é o espírito mais fino
que há em São Paulo. Dei-lhe as provas do livro e disse-lhe: lê isso e
escreve o prefácio. Ele soltou boa gargalhada; uma ideia de ler, outra a
ideia de prefaciar. Como é um requintado só lê as cousas supremas da
literatura universal. Não perde tempo com o bom: dá-o todo ao ótimo. Só
ao ótimo. Riu-se, pois, à minha ideia de ler provas de um novo, de um
nacional, de um indígena deste país que imortaliza em Academia 40
bestas. Insisti: exijo que leia. Quanto ao prefácio sei que o farás,
como consequência forçada da leitura. Fez cara de tédio e para
comprazer-me levou as provas. Dias depois aparece com 50 tiras escritas.
Era o prefácio. Então, perguntei . – É a mais perfeita obra-prima que
tenho lido nesta terra! E dissertou sobre a Vida com tal entusiasmo que
me comoveu.
Prepara-te, pois, para a glória – que a opinião
pública será a do Malta. Quero ter a glória de editar-te por inteiro. O
que saiu no “Estadinho”, os contos, tudo, tudo. Manda-me isso logo, para
fazermos os livros com sossego. O capítulo do Lourenço, o da mosca, são
páginas fortíssimas, suficientes para consagrar uma dúzia de nomes.
O
Aguaceiro é o quadro mais perfeito possível duma chuvarada nossa.
Ficará clássico. O incrível é que um sujeito do teu valor ainda esteja
ignorado aí, nesse recesso do sertão; e que já não esteja publicado e
vozeado pelas tubas da fama. Com dias os três livros publicados caem na
Academia – como um bólide – com três entrará para a panela. Com um só –
Vida ociosa – imortalizarás o teu nome: eu que não invejei ninguém,
invejo-te! Mas este gosto tenho: invejei a ti somente no Brasil inteiro.
O
livro sairá talvez no fim deste ano, a tempo de concorrer ao prêmio da
Academia. São dois contos que te entram para o bolso. Junto aqui as
condições do concurso para teu governo. Adeus. A leitura do teu livro
comoveu-me fundamente. Faltam os últimos capítulos. Vou lê-los. Adeus.
Lobato
Nota: O Malta a que se refere
Monteiro Lobato assinou o prefácio com o pseudônimo de Hilário Tácito,
que o consagrara como autor de Madame Pommery.
Carta de Godofredo Rangel
a Monteiro Lobato
29/12/1920
Recebi
15 exemplares do Vida ociosa. O trabalho tipográfico está primoroso.
Realça-lhe ainda o valor do prólogo. O Minarete já tem uma história
narrada a sério por um historiador às direitas. Se o livro não valer por
si, valerá pelo prólogo que é, não só uma crônica primorosamente
escrita, como um repositório de dados interessantes sobre o pai do Jeca e
sua formação literária. Porque, cá entre nós: o Cenáculo, afinal, era
você. Se outros nomes dele ficarem é que tu os levarás a reboque pelos
mares da glória, como bom amigo que és. Creio que a glória de Ramalho
foi feita um tanto desse modo pelo Eça...Vejo pelo carinho que tiveram
com meu livro chocho e pueril que estão deveras resolvidos a lançar-me.
Pelo êxito teremos a medida da força projetiva de vocês. Peguei da pena
várias vezes para dirigir-me ao Hilário Tácito agradecendo, mas não
soube como dirigir-me a ele. Aterra-me escrever a um homem de espírito,
com que não privo. Isso me obrigaria a artesoar frases e repuxar
conceitos finos do bestunto e duvido muito que fizesse coisa que não
impressionasse mal. Reservo-me, por isso para agradecer-lhe pessoalmente
quando aí for.
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