Operações corriqueiras do dia a dia como fazer uma compra, buscar informações ou abrir conta em banco podem ser complicadas se a pessoa não escuta. O Estado de Minas acompanhou a atriz Laís Drumond (D), surda de nascimento, e constatou que no comércio, prestadores de serviço e órgãos públicos a Língua Brasileira de Sinais (Libras) é praticamente desconhecida, dificultando a vida de muita gente. Em BH, há 4.557 pessoas surdas e 107.046 com deficiência auditiva, que, somadas, representam 4,5% da população da cidade. Diante da barreira à comunicação direta, a saída é escrever e receber mensagens escritas. Mas, também em relação a isso, há problemas. Enquanto entre os ouvintes o índice de analfabetismo na capital é de 3,8%, entre os surdos, devido ainda a obstáculos no ensino, sobe para 10,8%.
BH é surda para eles Obter informações simples, como endereço, preço de produto ou emissão de documento, é um tormento para quem tem deficiência auditiva, devido ao desconhecimento da Língua Brasileira de Sinais
Valquiria Lopes
As mãos que “falam” e tentam se fazer entender são de Laís Drumond. A atriz de 29 anos, surda desde o nascimento e filha de pais ouvintes, não se intimida em buscar informações, andar de ônibus, recorrer à Justiça ou abrir conta em banco. Mas nem sempre essas tarefas que fazem parte do dia a dia da maioria das pessoas são tão simples para Laís. Assim como ela, muitos surdos voltam para casa em Belo Horizonte frustrados ao buscar de atendimento por não conseguirem se comunicar com os ouvintes. Isso porque, além da dificuldade de audição, muitos têm o desenvolvimento da fala afetado, e sem o acompanhamento de um intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras) não conseguem ser entendidos.
Mesmo depois de 11 anos de oficialização do método, a primeira língua para surdos, quem convive com a deficiência relata os muitos desafios ainda a vencer. Na capital, são 4.557 pessoas surdas e 107.046 com alguma deficiência auditiva, segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Juntas, representam 4,5% da população da cidade.
A falta de compreensão sobre a língua do deficiente auditivo se repete a cada esquina em que ele precisa sair do seu mundo silencioso e trocar informações. O Estado de Minas foi às ruas com Laís Drumond para testar atendimentos e constatou as dificuldades enfrentadas no comércio, em órgãos públicos estaduais e municipais e na Polícia Militar. O problema é o mesmo: não há pessoas com conhecimento em Libras para atender deficientes auditivos.
A ausência de intérpretes começou na primeira parada: a Unidade de Atendimento Integrado (UAI) Praça Sete, onde Laís pediu informações a uma funcionária sobre emissão de certidão de nascimento. “A funcionária tentou sinalizar, mas ficou nervosa e sorrindo, ao contrário da expressão facial firme, que o surdo precisa para entender uma mensagem. Por fim, ela disse que era difícil, que não me entendia”, relatou Laís.
Segundo a atriz, a atendente ainda arriscou com o sinal de “nascer” em Libras, mas não sinalizou a palavra documento nem soube explicar o valor e o procedimento necessário para emissão. A “conversa” terminou em papel e caneta. “Todos os dias, eu e meu marido chegamos com pilhas de papéis em casa, como todos os surdos”, reclama. Segundo o coordenador da unidade, Eliel Benites, os funcionários da recepção e do serviço Posso Ajudar estão recebendo treinamento uma vez por semana, há cerca de três meses. Ele fala dos avanços, mas reconhece: “Ainda estamos em fase inicial.”
No terminal rodoviário, não foi diferente. O teste foi feito nos guichês de duas empresas de viagens, mas em ambos houve decepção. Na primeira, o pedido era para uma passagem com destino a Niterói (RJ). Poderia ter sido qualquer trecho que Laís não teria sido atendida, já que a funcionária foi clara. “Eu não te entendo”, disse em meio a risos. Ela tentou ser solícita e pediu que a atriz escrevesse seu pedido. Só assim houve comunicação. No segundo caso, Laís afirmou que não sabia escrever. Desse modo, mesmo tendo sinalizado para três funcionários sua intenção de comprar um bilhete para São Paulo, não houve sucesso na tentativa. Ela foi encaminhada ao setor de informações da rodoviária, onde também não havia intérpretes.
O teste para fazer uma simples compra acabou em transtorno também. Imagine explicar ao vendedor o desejo de comprar um sapato vermelho, de salto alto, pago em quatro vezes no cartão e sem juros. Mesmo com todo o esforço do atendente Janiel Salvador, de 22 anos, em acertar na cor, a forma de pagamento não foi compreendida. “Ela é esperta. Se comunica bem. Mas não entendo a linguagem dos surdos”, disse Janiel. O gerente da loja, Geovane Gonçalves, reconhece o problema: “Talvez seja a hora de buscar a capacitação”.
Dados do IBGE indicam que dos 4.179 surdos de BH com idade acima de 10 anos, 35,2% se enquadram na faixa etária de rendimento entre um e cinco salários mínimos, o que representa o maior percentual. Outros 28,2% recebem até um salário e 10,6% ganham acima de cinco salários. Segundo a demógrafa do instituto Luciene Longo, “a distribuição de renda entre os surdos se encaixa na da população ouvinte.” Laís lembra que investir na capacitação de funcionários no comércio pode representar um diferencial. “Se uma loja tem alguém que entende Libras ela vira referência entre os surdos.”
POLÍCIA MILITAR Uma experiência positiva surpreendeu Laís em sua luta diária. Ao pedir uma informação a um militar no Centro da capital, ela foi prontamente atendida pelo soldado João Luiz Chagas, da 6ª Cia. do 1º BPM, que estuda comunicação assistiva na PUC Minas. “Foi a única situação em que me senti bem, porque pude me comunicar sem dificuldade”, disse a atriz. O interesse do soldado pelo curso surgiu da demanda diária da população deficiente. “Tenho contato com cegos, surdos e pessoas com deficiência física. Preciso estar preparado para atendê-los”.
Mas chamar a polícia é um problema para os surdos. A queixa é sobre a falta de intérpretes e atendimento por telefone. “Nos comunicamos por mensagem de celular. Aí, eles retornam a ligação. Do que adianta?”, cobra Laís. O chefe da Sala de Imprensa da PM, major Gilmar Luciano Santos, informou que policiais não têm formação em Libras, à exceção dos militares do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate). A capacitação estava prevista, segundo ele, no pacote de cursos que serão ministrados aos policiais até a Copa das Confederações.
O desafio da aprendizagem
Índice de analfabetismo é maior entre os deficientes auditivos, segundo o IBGE. BH adota o ensino inclusivo, mesclando alunos surdos e ouvintes na mesma sala. Preconceito é outro grave problema
Valquiria Lopes
Uma população com maior dificuldade de aprendizado. É o que mostram os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre a alfabetização de pessoas com deficiência auditiva em Belo Horizonte. Enquanto 10,8% dos surdos são analfabetos, a taxa cai para 3,8% entre a população ouvinte. O índice é maior que o do estado (8,8%) e semelhante ao do Brasil, onde chega a 10,9%. Para a demógrafa do IBGE Luciene Longo, os dados da capital retratam os desafios dos surdos para aprender a leitura e a escrita de uma língua que não é própria a eles, o português, já que a Libras é seu idioma oficial. “Pode estar relacionado ainda à dificuldade de acesso a escolas inclusivas, com recurso para alfabetizar de forma adequada”, avalia a demógrafa. Outro problema que prejudica o aprendizado é o preconceito na sala de aula, como enfrentou uma aluna.
BH tem hoje cerca de 450 alunos surdos na escola. Dos 168 mil matriculados na rede municipal, 261 têm deficiência auditiva e estudam desde a educação infantil até a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Eles estão presentes em 32 das 257 escolas que integram o sistema do município. Já na rede estadual, 53 das 234 unidades escolares da capital têm surdos matriculados. Ao todo, eles somam 196 alunos com deficiência auditiva na rede do estado. Em Minas, são cerca de 2,3 mil atendidos por aproximadamente 1,3 mil professores intérpretes de Libras.
A rede municipal trabalha com a perspectiva inclusiva que coloca alunos surdos e ouvintes na mesma turma. Somente em cinco escolas existe um projeto para agregar apenas alunos surdos e promover a troca maior de experiência entre eles. A decisão de matricular o filho nessa unidade fica a cargo dos pais. Segundo a coordenadora do Núcleo de Inclusão Escolar da Secretaria Municipal de Educação (Smed), Patrícia Cunha, todas as unidades que recebem matrículas de alunos com deficiência auditiva contam com profissionais especializados para atendimento ao surdo. Em BH, são 18 instrutores e 27 intérpretes na rede municipal. Sobre a dificuldade de aprendizado, Patrícia pondera: “O português é um desafio enorme para a criança surda, que usa outra língua para se comunicar e que pensa em outra língua, a Libras.”
A diretora de educação especial da Secretaria de Estado de Educação, Ana Regina de Carvalho, explica que a rede estadual trabalha com as duas metodologias de ensino: escolas inclusivas – com alunos surdos e ouvintes juntos – e as unidades com ensino específico para deficientes auditivos. No primeiro caso há professores de conteúdos curriculares que trabalham auxiliados por outros com formação em Libras. Na especializada, o professor ensina os conteúdos para os surdos na Língua Brasileira de Sinais.
ENSINO BILÍNGUE A oferta de escolas bilíngues, com o ensino de Libras universalizado, é uma das cobranças do diretor do Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines) do Rio de Janeiro. Em palestra na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na quarta-feira, ele defendeu a ampliação das políticas públicas para atendimento ao surdo.
“Os surdos estão se desenvolvendo, se profissionalizando como qualquer outra pessoa que ouve. Portanto, eles precisam de oportunidades iguais no mercado de trabalho, na educação, na saúde. Uma das saídas seria difundir mais o ensino da Libras nas escolas”, alerta. Em BH, no entanto, as duas secretarias de educação ainda não têm projeto para dispor de intérpretes em todas as escolas.
Para a estudante B. C. F, de 13 anos, surda desde 1 ano, o ensino da sua língua foi fundamental para o início da aprendizagem. “Até os 9 anos estudei em escolas com ouvintes e não gostava porque algumas não tinham intérpretes e em outras o professor ficava de costas. Eu não conseguia aprender nada”, lembra. Ela conta ainda que era vítima de preconceito, porque colegas faziam chacotas pelo fato de ser surda. Hoje, estudando na Escola Estadual Francisco Sales, no Barro Preto, Região Centro-Sul de BH, diz ser mais feliz em uma sala de aula somente com surdos. “Faço fonoaudiologia aqui e melhorei minha fala. Consigo aprender e melhorei a sinalização da Libras”, diz.
Língua diferente
Saiba mais
A Língua Brasileira de Sinais (Libras), como o nome sugere, não é universal e sim própria do país. As línguas de sinais, assim como as orais, pertencem às comunidades onde são usadas e, por isso, apresentam diferenças consideráveis entre si. Existem diversas, como as línguas de sinais francesa, americana, chilena, argentina, inglesa, cada uma diferente da outra. Elas têm sua gramática própria, assim como as línguas orais, sendo totalmente independentes. E a língua de sinais de um país não tem necessariamente relação direta com a língua oral falada na mesma região.
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