CRÍTICA ROMANCE
Nova tradução aproxima clássico de leitor atual
Cabe ao leitor ler as adoráveis aventuras do cavaleiro que levam à compaixão e ao riso amplo com uma sempre renovada intensidade
Trinta anos depois, em 1983, o filho de Milton, Eugênio Amado, o seguiria numa nova tradução pela antiga editora Itatiaia. Considerando a importância e a popularidade da obra, só duas empreitadas em 50 anos são mesmo de espantar!
Mas na virada do século, as coisas começaram a mudar por aqui para o fidalgo e seu escudeiro.
Nos últimos 11 anos apareceram no Brasil quatro novas traduções: a de Sérgio Molina de 2002 para a editora 34, reeditada em edição de bolso em 2010; a de Carlos Nougué e José Luis Sanchez para a editora Record e mais uma de Eugênio Amado, para a editora Villa Rica (antiga Itatiaia), ambas em 2005; agora, a recém publicada de Ernani Ssó, para a Penguin/Companhia das Letras.
LEITOR ATUAL
A aposta explícita do último tradutor e seus editores é trazer o texto cervantino para mais perto do leitor brasileiro atual.
De fato, a leitura flui num português acessível, sem necessidade quase de notas de rodapé, e a tradução consegue seguir o ritmo de Cervantes com fidelidade e leveza, o que não é pouco.
Vejamos a primeiríssima frase que mesmo os que nunca leram o livro conhecem e todos os tradutores mencionados traduzem diferente: "En un lugar de la Mancha de cuyo nombre no quiero acordarme...".
Francisco Rico, um dos maiores cervantistas espanhóis cuja edição anotada Ssó afirma seguir, explica que "lugar" era de fato uma localidade e "no quiero acordarme" podia significar "não consigo lembrar".
Ssó troca "lugar" por "aldeia", mas deixa o verbo "querer", o conectivo e o reflexivo que dão um tom mais coloquial: "Numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar", aceita uma das dicas e despreza a outra...
Estamos aqui colocados diante de escolhas, entre críticos e tradutores, sobre as formas de aproximação ao romance: de um lado, os que procuram desvendar o tempo de Cervantes, o contexto de produção da obra; do outro, aqueles que buscam trazer o livro para perto, medindo-lhe a condição de clássico por sua capacidade de penetrar o presente com força sempre renovada.
Pois bem, qualquer uma das duas alternativas apresenta ganhos e perdas.
BORGES
Se quisermos dar ouvidos ao que Borges elucubra no ensaio "A Fruição Literária" constataremos paradoxalmente que o tempo, amigo de Cervantes, soube corrigir seus erros e sua frase, antes desajeitada, cresceu com o passar dos séculos.
A página de Cervantes, continua ele em "A Supersticiosa Ética do Leitor", tem vocação de imortalidade, pode atravessar o fogo das erratas, das versões aproximativas, das leituras distraídas, das incompreensões, sem colocar nunca sua alma à prova, e sempre "ganha póstumas batalhas contra seus tradutores".
Seja qual for a opção, por mais audaciosa ou conservadora que se pretenda, nunca atinge mortalmente aquilo que é pura vida em "Dom Quixote": seu poder imaginativo e a graça das situações que seu narrador vai criando passo a passo, a cada novo capítulo.
Muitos dos grandes críticos e veneradores da obra cervantina nunca o leram em espanhol.
Quanto aos dois posfácios da edição da Penguin/Companhia das Letras, talvez houvesse outros ensaios de Borges mais adequados ao tom menos erudito e próximo da tradução.
No caso do argentino Ricardo Piglia, embora se trate de uma instigante reflexão, fruto de suas atuais preocupações sobre a tradução como gênero literário, Cervantes é ali só uma referência de passagem.
Mas, no que se refere ao romance, cabe agora ao leitor brasileiro ler e reler as adoráveis aventuras do cavaleiro andante que levam à compaixão e ao riso amplo com uma sempre renovada intensidade.
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