Mesmo em meio a disputas acadêmicas e
fortes manifestações de hostilidade, a teoria freudiana tem importante
histórico de contribuições para o tratamento da síndrome
Paula Pimenta
Estado de Minas: 06/04/2013
No dia 2 comemorou-se o Dia Mundial da
Conscientização do Autismo, estabelecido pela Organização das Nações
Unidas (ONU) para divulgar mundialmente a existência da síndrome e sua
aceitação pelos demais.
O autismo é considerado uma síndrome e
não uma doença, por não se terem estabelecidas suas causas. Foi descrito
em 1943, pelo pedopsiquiatra infantil Leo Kanner e, desde então,
seguiram-se investigações diversas sobre sua origem que não obtiveram
comprovações até o momento.
Há 10 anos, houve uma amplitude nos
movimentos de pais de autistas, incitando a comunidade científica à
pesquisa e à consolidação de tratamentos para seus filhos. As políticas
públicas de educação também foram convocadas a acolher adequadamente
seus filhos, do que foi exemplo, no Brasil, a recente Lei 12.764, que
institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com
Transtorno do Espectro Autista.
As características particulares
do autismo trazem, de um mesmo golpe, um padrão e uma dispersão de
comportamentos. A matriz diagnóstica da síndrome compreende dificuldades
de comunicação, de interação social e nas áreas de interesse do
autista, porém cada um as demonstrará de maneira muito singular,
diferenciando-se dos demais. Essa variedade de comportamentos é o que
fundamenta o símbolo escolhido para o autismo, um laço composto por
peças de quebra-cabeça de cores diferentes.
O autismo não tem
cura, mas a qualidade da interação social de seus portadores pode ser
ampliada por meio de intervenções terapêuticas. A idade precoce para
início do trabalho é um consenso. Sendo o autismo uma síndrome
diagnosticada até os 3 anos de idade, quanto mais cedo for iniciado seu
acompanhamento, maior é a possibilidade de resposta da criança. O uso de
medicamentos não é basilar, tendo função acessória às intervenções
terapêuticas.
As práticas de tratamento se orientam em sentidos
diversos. Dentre aquelas no campo da psicologia, uma das mais difundidas
tem sido a terapia comportamental, que embasa o método ABA (sigla
inglesa para Análise Aplicada do Comportamento) e o programa TEACCH
(Tratamento e Educação de Crianças Autistas e com Deficiência
Relacionada à Comunicação, em inglês). Essas intervenções apresentam um
direcionamento educativo por meio de reforços dados aos comportamentos
esperados do sujeito, complementados pela extinção daqueles que se
mostram inadaptados e disfuncionais.
Recentemente, movimentos
isolados em alguns países realizaram tentativas de impedir juridicamente
a psicanálise de atender os autistas, em nome de uma infundada
superioridade científica dos resultados do ABA com essas crianças. Justo
a psicanálise, que traz em sua história a seminal atenção dada à
clínica da criança! Ademais, há estudos que demonstram as limitações do
ABA com os portadores de autismo, fato acompanhado pelos pais e
confirmado por muitos terapeutas comportamentais que levam com seriedade
seu trabalho.
A psicanálise tem um longo percurso pelo
tratamento do autismo, com relato de um caso atendido já em 1930, por
Melanie Klein, 13 anos antes de ser descrita a síndrome. Nas três
últimas décadas, ela avançou em sua formalização sobre a metodologia
desse tratamento, sobretudo com base na experiência de instituições
europeias dedicadas ao trabalho com essas crianças e adolescentes. Esse
aprimoramento metodológico tem se tornado objeto de estudo de várias
teses de programas de pós-graduação de nossas universidades, sustentadas
pelo método clínico que é próprio ao campo.
O que ocorre, então?
Essa
hostilidade à psicanálise tem suas raízes calcadas na distinção entre
divergentes concepções sobre o que seja ciência e qual metodologia lhe é
pertinente. Nesse sentido, a noção de “paradigma hegemônico” do
filósofo da ciência Thomas Kuhn colabora para seu discernimento. Em
relação ao portador de autismo, os defensores do ABA consideram que há
um déficit normativo que deve ser mensurado e corrigido em suas
inadaptações, por meio de intervenções objetivas que se pautem nos
comportamentos da criança.
Por seu turno, a concepção da
psicanálise remonta a uma abordagem psicodinâmica do autismo, entendendo
que os comportamentos desajustados têm uma função para o sujeito, sendo
seu modo de responder ao mundo, pela ótica de como o percebe. Muitas
vezes, porém, é uma forma pouco efetiva para ele e cabe ao psicanalista
auxiliá-lo a encontrar novas maneiras que lhe sejam viáveis para ampliar
seus resistentes limites à interação. Vê-se que são concepções diversas
e não complementares.
Imaginário social
Entretanto,
desfavoravelmente à psicanálise dois aspectos são realçados pelos seus
detratores. Um deles, antiquado diante dos avanços obtidos pela
psicanálise na clínica do autismo, é sempre relembrado por ser fator de
impacto no imaginário social, sobretudo dos pais. Refere-se a um item
isolado da história da psicanálise, em que um de seus expoentes, o
austríaco radicado nos Estados Unidos, Bruno Bettelheim, denominou as
mães dos autistas de “mães-geladeira”, provocando calorosas reações
daquelas grosseiramente acusadas. Só não recordam que, dois anos mais
tarde de sua lastimável interpretação, Bettelheim a retificou,
considerando que o que parecia causa poderia ser consequência, um
mecanismo defensivo da mãe em razão de uma sequência de frustrações nas
tentativas de estabelecer contato com o filho.
Outro aspecto
salientado toca em uma dificuldade inerente à complexidade do arcabouço
teórico da psicanálise. Termos técnicos são cunhados e passam a compor
uma rede de conceitos só compreensíveis pelos próprios psicanalistas. Na
verdade, estes até se mostram bastante estudiosos, participando de
reuniões periódicas fora do horário de trabalho para discutirem a
clínica e seus encaminhamentos, porém sempre entre seus pares.
Em
decorrência dessa objeção e vendo-se na relevância de transmitir sua
prática com o autismo para um público amplo, psicanalistas de vários
cantos do Brasil e de instituições psicanalíticas diversas decidiram se
reunir e constituíram um movimento para demarcar a importância e os
benefícios do tratamento psicanalítico com o autismo.
O fomento
dado às pesquisas psicanalíticas sobre o autismo nas universidades por
si só atesta sua cientificidade, tópico colocado em questão por seus
contendores. O discurso universitário pede uma clareza metodológica e
conceitual, requisitos que têm sido bem atendidos por seus
psicanalistas-pesquisadores. No entanto, isso não tem bastado. Diante
dessa interferência política que traz o ineditismo de se legislar
impeditivamente em um campo externo como o da saúde, a psicanálise
precisa evidenciar para a sociedade que sua eficácia no tratamento do
autismo é demonstrável além dos muros da universidade.
O momento
atual parece se configurar pelo recolhimento dos efeitos dos vários
tipos de tratamento propostos para o autismo. A psicanálise se faz
presente nesse debate ao delimitar, concisamente, sua orientação de se
tomar o autista como um sujeito, auxiliando-o, a partir de suas próprias
indicações, a ampliar sua relação peculiar com o mundo.
* Paula Pimenta é psicanalista, doutora em psicologia e atende portadores de autismo há 17 anos.
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