O Globo - 06/04/2013
Desde que escrevi o prefácio para
a nova edição das 200 melhores
crônicas de Rubem Braga
(Record, edição comemorativa
do centenário de nascimento
do cronista, que acaba
de chegar às livrarias), não consigo mais parar
de reler o autor. Na semana passada, preparando-
me para uma mesa de debates sobre sua
obra na série Prosa na Livrarias — que dividi
com Joaquim Ferreira dos Santos e Mauro Ventura,
no Rio — passei a devorar suas crônicas
ainda com mais avidez. Com uma fome interminável.
Foi quase uma intoxicação — mas que doença
saudável é o vício em grandes escritores! Enquanto
relia Braga, atravessei um tanto intrigado
os poemas de Sérgio Alcides, reunidos em
seu novo livro, “Píer” (Editora 34). Poemas desafiadores,
que me pediam, desde os primeiros
versos, um posto de observação — um píer —
desde onde eu pudesse contemplá-los com
mais lucidez.
Eis que encontro em Braga a plataforma que
buscava. Ela me aparece na crônica “O mistério
da poesia”, de 1949. “Aqui me debruço ainda
uma vez sobre o mistério da poesia”, o cronista
anuncia. Lê inspirado pela leitura de dois versos
de um poeta boliviano, cujo nome não pode recordar.
Dizem: “Trabajar era Bueno em El Sur.../
Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos”.
Versos simples, que falam do homem, da natureza
e do modo como o trabalho os integra. Mas
que, decidiu Braga, guardam um mistério.
“De onde vem o efeito poético?”, ele se pergunta.
Responde: “Talvez o que impressione seja
mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido
solene e alto às palavras de todo dia”. É o que faz
Sérgio Alcides em seu luminoso “Píer”. Para ler
seus poemas, preciso me equilibrar sobre eles —
e felizmente encontrei em Braga um cais acolhedor.
Já na abertura, Alcides nos oferece uma definição
imprevista da poesia: “Poeira que está
caindo,/ cobrindo as mercadorias”. Como ele
nos diz também, o poeta se limita a “arranhar” o
mundo, “o mundo menos real/ — mas real — da
circunstância”. Não “se aprofunda”. Permanece em
sua plataforma, ou não chega a escrever.
A circunstância: eis o nome que Alcides dá ao
que Braga chama de “palavras de todo dia”. O banal,
o comum, o transitório — tudo aquilo que, a
princípio, parece resistir à poesia e que, contudo,
justamente porque resiste, consegue
abrigá-la. Para o poeta, a
poesia contamina o mundo —
do mesmo modo que me contaminei
com as crônicas de Braga.
Diz Sérgio Alcides: “Não há corpos,
não há tempo/ fora desta
mancha gráfica,/ página estreita
virando,/ escrita sombra de sonho,/
curva de interrogação”. A
poesia se origina do espanto que
é divisar o mundo um pouco
mais acima do que, na verdade,
ele está. Em capturá-lo no píer da página estreita.
Essa elevação é uma estratégia, com a qual o poeta
amansa o bicho escuro e “profundo” que traz
dentro de si. Não conhece o bicho que o habita,
mas o alisa (arranha) e dele se aproxima. É verdade:
vivemos, talvez hoje mais que nunca, em um
mundo tolo. Alcides o descreve: “De uma montanha-
delivery,/ nasce um ridículo Mickey/ a pilha,
que, made in China/ tomba tocando tambor”.
Contra este mundo — “onde pasta o gado idiota/
que não dá leite, só arrobas” — a poesia promove
uma espécie de repuxão. A própria web (“arroba”)
pode ser sua arma: por que não?
Mas — em pleno sol, em pleno cais — não precisamos
ser graves. A gravidade, diz o poeta, não está
nas coisas, mas em nossa
mente. “A gravidade está no pensamento
que, situado na cabeça,/
empurra devagar o vulto dos
sintomas para baixo”. Braga deplora
a crença de que, quando
turvamos um pouco as águas,
elas se tornam mais profundas”.
Reclama: “Não faltam poetas
modernos que procuram este
mistério (da poesia) enunciando
coisas obscuras”. Da claridade de
um píer, mostra-nos Sérgio Alcides,
podemos arrancar, tantas vezes, mais potência.
Muitos insistem em acreditar que não — e repetem
o mesmo engano daqueles que pensam
que das crônicas, como as de Rubem Braga, só tiramos
futilidades.
O pensamento mais complexo, muitas vezes,
está na superfície. Escreve Alcides: “Lá vem o beduíno:
sou eu? Seu turbante/ é meu pensamento
dando voltas, em branco”. O tédio, a assepsia, o
branco, que em geral desprezamos como inúteis,
podem gerar o imprevisto. E então Alcides
nos apresenta a realidade mais dura: a de que
não existem ideias soltas, “imateriais”. “Só os/
ossos — os hóspedes involuntários — perpetuam/
em suspenso os nossos mais prudentes
pensamentos”. Ao perfurar um poema, ultrapassadas
a carne e a paixão, chegamos ao osso, isto
é, à ideia dura, a “ideia coisa”, última região em
nosso interior em que o pensamento ainda se
comprime.
“A vida é só um episódio na história dos ossos”,
escreve Sérgio Alcides, levando-nos a recordar
dos bilhões de anos que o planeta Terra viveu
sem necessitar de nossa existência. Também a
poesia, para além da carne, insiste nos ossos
que, sozinhos, “cuidam desanimados de si”. Nessa
altura, Alcides e Braga se encontram em uma
suave, mas desafiadora, metafísica das coisas
que — uma vez que a morte é inevitável — se
transforma em uma metafísica dos ossos.
Para além do corpo, não há o espírito, mas o
osso. Tanto o espírito, como o pensamento, ainda
são parte do corpo vivo e não existem sem
ele. Finda a vida, restam os ossos, com sua metafísica
fria e sem eloquência. Resta algo que já
não está mais no homem, mas além do homem.
Escreve Alcides: “Os ossos são desumanos./ Lêse
neles apenas o presente, que branqueja”. Lêse
o mesmo, o imóvel, enquanto o humano é diferença
e movimento.
Escreve ainda Alcides: “Não leio nos ossos o
futuro, que só pode/ ser lido nas vísceras”. O futuro
só se inscreve na sujeira, na respiração desordenada,
nos fluidos repulsivos, no resfolegar.
Nos ossos, o poeta lê um presente perpétuo, que
na verdade mata o presente, pois este é sempre
desmentido. Conhecia Rubem Braga muito bem
esses movimentos mínimos com que a vida se
perpetua. O poeta, dizia Braga, quer muito pouco.
Cultiva só o “desejo de fazer alguma coisa
simples, honrada e bela, e imaginar que já se
fez”. Algo tão estreito — como um píer — mas
que ainda assim consegue nos sustentar.
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