Volume organizado por Newton Bignotto
analisa as principais matrizes históricas das experiências republicanas.
Ensaios destacam elementos que podem ajudar a enfrentar questões do
nosso tempo
Paula Gabriela Mendes Lima
Estado de Minas: 06/04/2013
A atuação da sociedade na cena política
parece exigir um enorme esforço dos cidadãos brasileiros, que estão, na
sua maioria, preocupados com os interesses privados e com os direitos
individuais. Participação popular e cidadania ativa, por exemplo,
parecem temas utópicos na atualidade. A recém-lançada obra Matrizes do
republicanismo nos instiga a pensar sobre esse esvaziamento do espaço
público e suas possíveis soluções a partir da apresentação de uma
história das ideias republicanas. Convite à reflexão sobre a natureza
dos problemas políticos atuais a partir da tradição republicana, ela
oferece suporte para o desenvolvimento de uma filosofia adequada ao
nosso tempo.
Trata-se de obra coletiva organizada pelo professor
Newton Bignotto, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), com textos de professores e pesquisadores da
instituição e da Universidade de São Paulo (USP). Cada autor apresenta
uma matriz republicana que se desenvolve de forma específica, como
produto de um determinado momento histórico, mas incorpora e retoma
temas trabalhados em outros períodos.
Sérgio Cardoso analisa as
instituições, os pensamentos e as representações produzidas a partir do
século 2 a.C., período em que se inscreve a República Romana. O ideário
político romano, nesse período, assentava-se em conceitos e categorias
associadas à cultura política dos gregos. O autor delimita sua análise à
História, obra do grego Políbio, o que permite refletir sobre as
consequências do entrelaçamento desses dois mundos para a constituição
das matrizes do republicanismo romano.
Políbio analisa as
diversas formas de Constituição e a natureza do regime romano e Cardoso
destaca a concepção de Constituição Mista e de poder do povo. Na
República romana a Constituição dispõe que o povo é um dos poderes.
Entretanto, isso não corresponde à realidade da época, quando houve
efetiva exclusão do povo do exercício do poder. Isso não significa,
contudo, que haja equívoco nas considerações de Políbio sobre o poder do
povo: não é o povo que governa, mas o consentimento popular que
legitima um regime. O povo, constituído por uma história, mantém os
poderes e rege a vida em comum.
O republicanismo italiano do
período renascentista oferece uma contribuição original. O professor
Helton Adverse, por sua vez, apresenta-a a partir da análise dos traços
fundamentais do republicanismo florentino. Ele tem como ponto de partida
a concepção de humanismo cívico, caracterizado pela valorização da vida
ativa e uma nova visão de história, “comprometida com a produção de um
sentido político a ser partilhado, com o desenvolvimento de um
sentimento cívico e com o estreitamento de laços entre o cidadão e a
cidade”.
A discussão teórica sobre o humanismo cívico suscitou
uma nova formulação do republicanismo no final do século 15. Nicolau
Maquiavel, nesse período, apresentou a liberdade e a lei como o
resultado do confronto entre desejos que se sobrepuserem podem demolir o
corpo político. A lei, nesse sentido, não tem sua origem no
consentimento popular, mas no legislador. Cabe a ele, com suas
habilidades políticas, fundar e refundar um governo de leis e, com isso,
abrir caminho para a ação do povo, caracterizado pela devoção à pátria,
o respeito às leis e o amor à liberdade.
Governo das leis
Ao
contrário da Itália – onde as reflexões sobre o republicanismo estão
presentes desde a Roma antiga –, o ideário republicano foi incorporado
ao pensamento político inglês no decorrer do século 16. Suas matrizes,
apresenta o professor Alberto Barros, remontam a um período de protestos
contra a monarquia, em que o debate sobre o direito à resistência
política tem relevância. Defendia-se o direito do povo (detentor do
poder político) de assumi-lo caso o governante desprezasse o interesse
comum e as leis fundadas no consentimento popular.
Na primeira
metade do século 17, declarada a Commonwealth (ou “Estado livre”), o
republicanismo se destacava como alternativa possível. Barros afirma que
a literatura gerada nesse período, influenciada pelas ideias de John
Milton, Marchamont Nedham e James Harrington, passou a defender a ideia
de governo das leis e assumiu o republicanismo como regime mais adequado
para o exercício da liberdade e proteção dos bens dos cidadãos. Outros
republicanos, como Algernon Sidney, sustentavam ainda a viabilidade de
um projeto constitucional em que o elemento democrático fosse
predominante. Tal projeto possibilitaria uma cidadania ativa na
articulação e preservação do interesse público.
Nas colônias
norte-americanas, essa literatura inglesa encontrou maior eco do que na
Inglaterra. No século 18, desenvolveu-se nos Estados Unidos uma complexa
rede de sociabilidade e ativismo político que se expandiu territorial e
verticalmente, abrangendo diversos extratos sociais. Essas estruturas
associativas voluntárias, afirma a professora Heloisa Starling, marcaram
o republicanismo norte-americano por consolidar o direito de
participação popular e fundar sistema de intensa circulação de ideias. O
compartilhamento de condutas políticas e de um ideário político
republicano viabilizou o sucesso da Revolução Americana e, em
consequência, a sua Declaração de Independência.
Depois da
revolução, o debate sobre o republicanismo americano se intensificou.
Para Starling, a Constituição Americana promulgada neste período trouxe
traços inovadores à tradição republicana, como o “esquema da
representação” e a positivação da Carta de Direitos. Esse “esquema”
abrangia a autonomia dos Estados e as condições para a constituição de
um governo central com capacidade de regulação nacional, exército
permanente, controle fiscal etc – compreendia também o processo de
escolha dos representantes do povo para o exercício desses governos. Já a
carta, anexada ao texto constitucional em 1791, tinha como escopo a
extensão da cidadania a todos os indivíduos e a necessidade de limitar
as arbitrariedades de um governo central forte. Com isso, articulou-se,
no texto constitucional, a ideia de república e democracia.
Virtude e soberania
A
matriz do republicanismo francês também se desenvolveu durante um
período revolucionário, especialmente entre o século 17 e 18. Para
apresentá-la, o professor Newton Bignotto tem como ponto de partida de
sua análise as contribuições do pensamento de Montesquieu e Rousseau. O
primeiro associa o regime republicano à ideia de virtude política,
definida como o amor pelas leis e pela pátria e como supremacia do
interesse público sobre o interesse particular. O segundo também abordou
o tema da virtude e da base moral dos homens para a legitimação do
sistema social e político. Outra questão importante de Rousseau, para
Bignotto, é a ideia da soberania, tratada do ponto de vista da vontade
geral: ela expressa um ente coletivo que busca construir um corpo
político a partir do interesse comum. Esse ente coletivo deve ser uno e
indivisível, pois o soberano não pode se dividir sobre pena de ser
destruído.
A partir desse repertório conceitual, Bignotto
delimita suas reflexões ao período da Revolução Francesa compreendido
entre a fuga do rei Luís XVI até junho de 1791. Identifica-se, nesse
contexto, duas vertentes do republicanismo. Uma destaca-se pela defesa
dos interesses privados e do avanço das instituições legais e tem como
um de seus representantes Condorcet, que apresentava um projeto
constitucional fundado na concepção de representação e direitos humanos.
A outra, caracterizada pela defesa do interesse público, associa-se
especialmente à Robespierre. Ele reivindicava dos homens virtuosos o
amor à pátria que deveria ser defendida com todas as armas. Para ele não
havia como separar revolução e república. Com o fim do combate aos
inimigos da pátria tem-se, também, o fim do republicanismo francês do
século 18.
Essas cinco matrizes recuperam conceitos e princípios
da tradição republicana como a defesa da vida ativa e do interesse
comum, e trazem elementos inovadores à história do pensamento
republicano. Elas apresentam valores e ideias que foram fundamentais em
um determinado momento político e que podem ser hoje utilizados como
referencial para buscar respostas às questões políticas de nossa época.
* Paula Gabriela Mendes Lima é Mestre em direito pela UFMG e consultora em direito da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
Matrizes do Republicanismo
.Organização de Newton Bignotto
.Editora UFMG, 212 páginas, R$ 58
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