domingo, 28 de abril de 2013

Nhá Chica, a primeira negra a se tornar beata no país-Gustavo Werneck‏

Uma cidade movida pela fé 

Baependi, no Sul de Minas, se prepara para a beatificação de Nhá Chica, que deverá reunir 40 mil pessoas no sábado. Mineira será a primeira negra a se tornar beata no país
 



Gustavo Werneck
Enviado especial


Estado de Minas: 28/04/2013 




Ana Lúcia diz que recebeu graça de Nhá Chica e se curou de problema no coração (BETO NOVAES/EM/D.A PRESS)
Ana Lúcia diz que recebeu graça de Nhá Chica e se curou de problema no coração
Baependi – A cidade do Sul de Minas já está em festa e se veste de amarelo e branco, cores do Vaticano e da Igreja, para homenagear Francisca de Paula de Jesus (1810-1895), a Nhá Chica, que é “santa” no coração do povo e será beatificada sábado, às 15h, na presença estimada de cerca de 40 mil pessoas – 400 romarias de vários estados estão inscritas. A mineira da região do Campo das Vertentes será a primeira negra no país a se tornar beata, etapa anterior à canonização. As janelas das casas expõem toalhas e flores, os templos católicos mantêm cortinas nas portas e em bairros, como o Lavapés, as ruas se enchem de bandeirinhas.

A cerimônia, com missa e ritos presididos pelo cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação da Causa dos Santos e representante do papa Francisco, será no espaço G.A. Pedras, perto do Portal de Baependi, município de 18 mil habitantes localizado a 380 quilômetros de Belo Horizonte. A campanha pela beatificação da filha de uma ex-escrava começou em 1952 e foi concretizada graças ao reconhecimento do milagre concedido, por intecessão de Nhá Chica, à professora Ana Lúcia Meirelles Leite, de 68 anos, moradora da vizinha Caxambu e curada de problema cardíaco congênito.
“Primeira negra no país a se tornar beata, Nhá Chica representa a grandeza de Deus em meio à fragilidade humana e desigualdades sociais”, diz o secretário da beatificação, padre José Douglas Baroni, titular da Paróquia de Santa Maria e reitor da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, chamada popularmente de Santuário de Nhá Chica. “É amor, caridade, solidariedade, humildade e obediência, um convite a participar da Igreja de Cristo”, acrescenta. A partir da cerimônia em que a mineira se tornará bem-aventurada Nhá Chica ou beata Nhá Chica, a imagem da idosa sentada numa cadeira e mãos apoiadas num guarda-chuva vai mudar de figura. No altar, estará de pé, de braços abertos e com um rosário na mão direita.

Graça Com os olhos brilhantes e iluminados pela força da fé, a professora Ana Lúcia diz, bem-humorada, que o coração está 100% para aguentar as emoções que vêm por aí. Ela estará no altar montado no terreno gigantesco ao lado de autoridades eclesiásticas, a exemplo do bispo de Campanha, dom  Diamantino Prata de Carvalho, políticas, como o governador Antonio Anastasia, o postulador da Causa de Beatificação, o italiano Paolo Vilotta, além de 400 padres. Casada há 48 anos com o fazendeiro José Márcio Carvalho e mãe de um casal, Ana Lúcia não se esquece do dia 28 de junho de 1995, quando completou 50 anos. Fazendo faxina em casa, ficou cega de repente. “Não enxergava nada e chamei logo por Nhá Chica, de quem sempre fui devota”, conta. Pouco depois recuperou a visão.

Leonides Maradei, de 80 anos, enfeita janela para beatificação de mineira (BETO NOVAES/EM/D.A PRESS)
Leonides Maradei, de 80 anos, enfeita janela para beatificação de mineira

 A cegueira foi diagnosticada como isquemia transitória e, preocupada, a professora procurou especialistas que pediram uma ressonância magnética. “O resultado foi um mal congênito no coração, o sangue passava por caminhos errados”, conta Ana Lúcia. Com medo da cirurgia, ela ouviu do médico uma frase que aumentou o sufoco: “Operar uma pessoa com cinco anos é bem diferente de outra com 50”. Exames se sucederam em Belo Horizonte e em São Paulo, até que a paciente padeceu três dias com uma febre alta.

Foi no terceiro dia que a melhora chegou. “Era uma sexta-feira, às 15h, horário em que Nhá Chica intercedia a Deus para fazer milagres. Pedi com fé, rezei salve-rainha e ave-maria”, conta. O tempo passou e a professora foi só melhorando. Seis meses depois, voltou ao médico para fazer exames. O horário da consulta: 15h de uma sexta-feira. “Apresentei os resultados ao cardiologista, que perguntou se eu havia feito cirurgia espiritual, pois não encontrou nada de errado. Estava curada e a medicina não conseguia explicar”. Ana Lúcia não sabe por que mereceu tal graça, apenas revela que “não entendemos os desígnios de Deus”.


Devoção ampliada Depois da beatificação, imagem de Nhá Chica poderá ser cultuada na área da diocese de Campanha, à qual pertence Baependi. Santuário na cidade atrai visitantes de todo o país

Gustavo Werneck
Enviado especial

Fiéis rezam em torno do túmulo de Nhá Chica na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Baependi (beto novaes/em/d.a press )
Fiéis rezam em torno do túmulo de Nhá Chica na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Baependi
Nhá Chica será a segunda leiga brasileira – de Minas é a primeira – a ganhar os altares de uma igreja, destaca o secretário da beatificação, padre José Douglas Baroni. A pioneira foi a jovem catarinense Albertina Berkenbrock (1919-1931), que morreu assassinada e foi beatificada em 20 de outubro de 2007, na diocese de Tubarão (SC). Leiga quer dizer que não pertencia a nenhuma congregação religiosa, não era freira nem irmã de caridade. Na condição de beata, a mineira, filha de uma ex-escrava, analfabeta e pobre, natural do distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, que pertencia a São João del-Rei, na Região do Campo das Vertentes, poderá, agora, ter culto público com a sua imagem dentro dos limites da diocese de Campanha, à qual pertence Baependi. Para outra regiões é preciso autorização do papa.

Em 1863, aos 53 anos, Nhá Chica iniciou a construção de uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição, a quem chamava carinhosamente de “minha sinhá”, que quer dizer “minha senhora”. O singelo templo foi demolido e, no lugar, estão a Igreja de Nossa Senhora da Conceição e as dependências da Associação Beneficente Nhá Chica, comandada pela congregação das Irmãs Franciscanas do Senhor, de origem italiana. A diretora da associação, irmã Claudine Ribeiro, explica que, em 1953, o então bispo de Campanha, dom Inocêncio, convidou a congregação para assumir a responsabilidade sobre a Capela de Nossa Senhora da Conceição, desde que as obras começassem em dois anos. “A madre Crescência Girlando aceitou o desafio e construiu uma casa para crianças abandonadas, recebendo inicialmente 12 meninas”, conta irmã Claudine.

Hoje, a associação acolhe 170 crianças e adolescentes (de até 17 anos). O local não funciona como escola, mas oferece, gratuitamente, das 7h às 17h, aulas de reforço, atendimento psicológico, cursos de informática, música, literatura, trabalhos manuais, além de brinquedoteca e educação física. Aos sábados, os treinos de judô estão abertos à comunidade.

A proximidade da cerimônia de beatificação anima a irmã Claudine, lembrando que há 20 mil graças registradas conseguidas por intercessão de Nhá Chica – para o processo de canonização será necessário a comprovação de um novo milagre. “É a santa da simplicidade e mãe dos pobres, demorou 30 anos para construir a sua capelinha. Na imagem que irá para o santuário, ela estará de pé, de prontidão, como se dissesse ‘estou pronta’”, acredita a religiosa, para quem “ela nasceu com a clarividência, uma ligação direta com Deus, e conseguiu ver o resultado da oração”. A irmã faz questão de citar uma frase de Nhá Chica, que traduz o comportamento dela: “Eu não sou santa. Sou uma pobre mulher analfabeta. Eu rezo a Deus, através de sua Santíssima Mãe, e me atende”.

Memorial O movimento é sempre intenso na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, o popular Santuário Nhá Chica. Gente de todo canto visita o pequeno memorial, na casa onde ela viveu, podendo ser vistos o rosário que ela usava, tijolos de adobe da antiga capela, certidão de batismo, entre outros objetos. De férias no Sul de Minas, o casal carioca Otávio José Penha Melo, analista de sistemas, e Lucirene Alves Ferreira, técnica em nutrição, rezou diante da grande escultura de Nhá Chica, na escadaria da igreja. “Tenho muita fé em Deus e pedi pela minha saúde”, disse Lucirene. O marido também pediu pelo mesmo.

Na sala dos milagres da reitoria episcopal, na casa primitiva onde viveu a leiga mineira, junto ao santuário, Ana Lúcia Meirelles Leite mandou fazer um quadro com a frase: “Meu coração nas mãos de Nhá Chica. Eterna gratidão por este milagre”. Para Ana Lúcia, “se há uma palavra para resumir a vida dela é simplicidade”, afirma. Ela costuma rezar diante da Nossa Senhora da Conceição que pertenceu a Nhá Chica e fica num altar, acendendo velas no túmulo, dentro da igreja. Recentemente, os restos mortais foram trasladados para uma urna próxima ao altar, perto da imagem da futura beata.

LINHA DO TEMPO
» 1810 – Francisca de Paula de Jesus,
a Nhá Chica, nasce no distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, que pertencia a São João del-Rei, na região do Campo das Vertentes. É batizada em 26 de abril daquele ano

» 1814-1815 –Com a mãe, Isabel e o
irmão, Teotônio, Francisca, filha de ex-escrava, muda-se para Baependi. Isabel morre em 1818

» 1863 –Nhá Chica inicia a
construção da Capela de Nossa Senhora da Conceição.

» 1895 – Em 14 de junho, Nhá Chica
morre em Baependi. Ela fica quatro dias insepulta. Contam que seu corpo exalava cheiro de rosas.

» 1952 –Começa a primeira
campanha para beatificação de Nhá Chica.

» 1954 – A capela construída pela
leiga é confiada às Irmãs Franciscanas do Senhor (IFS), que mantêm a Associação Beneficente Nhá Chica.

» 1989 – Nova comissão é formada
para beatificação da leiga.

» 1991 – Nhá Chica recebe
oficialmente o título de Serva de Deus da Congregação das Causas dos Santos do Vaticano.

» 1992 – Em 14 de janeiro, é
instalada a comissão pela beatificação de Nhá Chica.

» 1993 –Em 16 de julho, tem início o
processo informativo diocesano, pelo bispo diocesano de Campanha, dom Aloísio Roque Oppermann.

» 1998 – Em 18 de junho, é feita a
exumação dos restos mortais de Nhá Chica, na presença de autoridades eclesiásticas, de integrantes do tribunal eclesiástico pela causa de beatificação e médicos-legistas.

» 2001 –Publicado o Positio,
documento que reúne todos os dados e testemunhos recolhidos na fase diocesana, que corresponde à primeira etapa do processo de beatificação.

» 2004 –Em 30 de abril, religiosos
brasileiros reunidos na 42ª Assembleia Geral de Bispos do Brasil, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), assinam documento pedindo a beatificação de Nhá Chica. Documento reuniu 204 assinaturas e foi encaminhado pela diocese de Campanha ao papa João Paulo II.

» 2010 – Em 8 de junho, no Vaticano,
comissão de cardeais dá o parecer favorável às virtudes da Serva de Deus Nhá Chica.

» 2011 –Em 14 de janeiro, o papa
Bento XVI aprova as virtudes heroicas (castidade, obediência, fé, pobreza, esperança, caridade, fortaleza, prudência, temperança, justiça e humildade) e concede o título de venerável.

» 2011 –Comissão médica da
Congregação das Causas dos Santos do Vaticano reconhece o milagre ocorrido por intercessão de Nhá Chica em favor da professora Ana Lúcia Meirelles Leite. Os sete médicos deram voto favorável: a cura não tem explicação científica.

» 2012 –Em 5 de junho, estudo do
milagre é analisado pela comissão de cardeais da Santa Sé. No dia 28, Bento XVI promulga decreto de beatificação de Nhá Chica. Cerimônia oficial é marcada para 4 de maio.

Memória
Cerimônia para
Padre Eustáquio
Esta é a segunda cerimônia de beatificação em Minas, embora seja a primeira de uma mulher, negra e leiga. A pioneira ocorreu em Belo Horizonte, em 15 de junho de 2006, no Mineirão. Milhares de pessoas participaram da cerimônia que tornou beato o holandês Padre Eustáquio (1890-1943). Por intercessão do religioso, o padre Gonçalo Belém Rocha
(1923-2007) foi curado, em 1962, de câncer na garganta. 



População na expectativa





Gustavo Werneck
Enviado especial

Sônia Pereira da Silva (D) e moradores preparam bandeirinhas: %u201CQueremos a cidade bonita%u201D  (BETO NOVAES/EM/D. A PRESS)
Sônia Pereira da Silva (D) e moradores preparam bandeirinhas: %u201CQueremos a cidade bonita%u201D
Nas ruas de Baependi, município que nasceu nos tempos coloniais e faz parte da Estrada Real, o clima é de alegria e muita expectativa. No Bairro Lavapés, as bandeirinhas amarelas enfeitam as ruas e residências. “Estou feliz, pois vou ver este dia tão importante para nós”, diz, com muita animação, a dona de casa Leonides Maradei, de 80 anos, moradora da Rua Vicente Seixas, que já arrumou sua janela com flores e toalha com o retrato de Nhá Chica. Ela não se cansa de admirar a obra coletiva, ao lado da filha Aparecida da Silva Reis e da neta Marina, de 10, e das vizinhas Tereza da Conceição Nogueira, de 74, Maria José da Silva, de 68, e Neuza Maria da Silva, de 59. Ao passar na rua, Elizabete da Silva, de 56, revela que rezou para Nhá Chica e Deus e foi atendida, pois o seu filho ficou curado de forte depressão. “Hoje ele está ótimo. Construiu uma casa de onde se vê a casa de Nhá Chica e a igreja”, afirma com alívio.

Mais adiante, um grupo se apressa para terminar o cordão de bandeirinhas e estendê-lo nos bambus dos dois lados da rua. “Queremos ver a cidade bem bonita para homenagear Nhá Chica”, diz, sentada numa cadeira na porta da casa, Sônia Maria Alves Pereira da Silva, de 47. As grades da residência também estão pintadas de amarelo, mas ela dá um sorriso e diz que é só coincidência. Desde sexta-feira, a comunidade católica participa de missas e recitação do terço na Igreja de Nossa Senhora da Conceição. E de amanhã até domingo ocorrerá a Jornada da Beatificação, com atividades diárias e repique de sinos sempre às 12h.

A missa solene de beatificação foi especialmente composta, para coro e orquestra de câmara, pelo padre Luís Henrique Eloy e Silva, professor de sagradas escrituras na PUC Minas, em Belo Horizonte.

Perfume de rosas

Gustavo Werneck
Enviado especial

 



Vida de fé em Deus e atenção a quem precisava de ajuda. Francisca de Paula de Jesus era bem menina quando chegou a Baependi na companhia da mãe, Isabel, uma ex- escrava, e do irmão Teotônio. Com eles, poucos pertences e a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Não demorou muito e Francisca, então com 10 anos, ficou órfã, contando apenas com o irmão, de 12. Antes de partir, a mãe deixara os filhos aos cuidados e sob a proteção de Nossa Senhora, a quem a menina chamava de %u201Cminha sinhá%u201D e não fazia nada sem consultá-la.

Nhá Chica cuidou da herança espiritual que recebera da mãe. Nunca se casou e rejeitou todas as propostas de matrimônio que lhes apareceram. O seu objetivo era atender quem a procurava, dando-se bem com os pobres, ricos e mais necessitados. Nos lábios, tinha sempre uma palavra de conforto. Desde jovem, era procurada para dar conselhos, fazer orações e dar sugestões para pessoas que lidavam com negócios. Contam que muitas pessoas não tomavam decisões antes de consultá-la e, para quem a considerava santa, respondia: %u201CÉ porque rezo com fé%u201D.

A fama de santidade se espalhou de tal modo que pessoas de muito longe começaram a visitar Baependi para conhecê-la. A todos atendia com a mesma paciência e dedicação, mas nas sextas-feiras não atendia ninguém. Era o dia em que lavava as roupas e se dedicava mais à oração e à penitência, alegando que sexta-feira é quando se recorda %u201Ca paixão e a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo para a salvação de todos%u201D. Às 15h, intensificava as orações e mantinha uma particular veneração à Virgem da Conceição.

Ao lado de sua casa construiu a capelinha onde venerava uma pequena Imagem de Nossa Senhora da Conceição. Nhá Chica morreu em 14 de junho de 1895, com 87 anos, mas foi sepultada no dia 18, no interior da capela por ela construída. As pessoas que ali estiveram disseram que exalou de seu corpo um misterioso perfume de rosas nos quatro dias do velório. Tal perfume foi novamente sentido em 18 de junho de 1998, 103 anos depois, por autoridades eclesiásticas e também pelos pedreiros, por ocasião da exumação do seu corpo.

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